Em 2015 a Igreja Católica Apostólica Romana celebra o 50.º aniversário
de encerramento do Concílio Vaticano II, realizado de outubro de 1962 a
outubro de 1965. Tratou-se do evento mais marcante da Igreja no século
20.
A comemoração desse aniversário está sendo ocasião para recordar
personalidades importantes do concílio, como os papas João XXIII e Paulo
VI. Mas também para voltar às grandes intuições e orientações dessa
“assembleia-geral” do episcopado católico de todo o mundo. De fato, os
ensinamentos conciliares ainda estão longe de ser plenamente postos em
prática, muito embora um caminho significativo já tenha sido percorrido
nesses 50 anos.
No Brasil diversos eventos vêm sendo realizados em âmbitos acadêmicos
e eclesiais, nos últimos três anos, para comemorar esse cinquentenário.
Para 2015 a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) está
promovendo uma reflexão mais ampla, em âmbito popular, sobre o concílio
por meio da Campanha da Fraternidade. Com o tema “Fraternidade: Igreja e
Sociedade” e o lema “Eu Vim para Servir”, a campanha aborda a relação
Igreja-sociedade à luz da fé cristã e das diretrizes do Concílio
Vaticano II.
A Campanha da Fraternidade parte de dois pressupostos fundamentais
para a vida cristã e centrais no concílio: a autocompreensão da própria
Igreja e as implicações da fé cristã para o convívio social e para a
presença da Igreja no mundo. Em outubro de 1963, na abertura da segunda
sessão do concílio, o papa Paulo VI expressou isso nas duas perguntas
feitas no seu discurso aos participantes: “Igreja, que dizes de ti
mesma? Igreja, dize, qual é tua missão?” Os 16 documentos conciliares
respondem a essa dupla interpelação.
De fato, o cristianismo, vivido pela Igreja Católica, é uma religião
histórica e não apenas sapiencial, embora também tenha essa conotação.
Além de transmitir ensinamentos a serem acolhidos pessoalmente, sua
proposta também é levar a uma prática social e histórica, em que suas
convicções e seus ensinamentos sejam traduzidos em expressões de cultura
e formas de convívio social.
A autocompreensão da Igreja aparece, sobretudo, no documento
conciliar Lumen Gentium (A luz dos Povos): ela entende ser formada por
todos os que aderem a Cristo pela fé no Evangelho e pelo batismo; assim,
mais que uma instituição juridicamente estruturada, que não deixa de
ser, ela é um imenso “povo de Deus”, presente entre os povos e as nações
de todo o mundo, não se sobrepondo a eles, mas inserindo-se neles, como
o sal na comida ou como o fermento na massa do pão. Portanto, a
identificação pura e simples da Igreja com os membros da hierarquia é
insuficiente e inadequada; ela é a comunidade de todos os batizados,
feitos discípulos de Jesus Cristo e testemunhas do seu Evangelho.
A partir desse princípio se entende que uma das grandes questões
assumidas pelo concílio tenha sido a superação da visão dicotômica
“Igreja-mundo”. Isso se desdobra no esforço da Igreja de abrir-se ao
diálogo com o mundo, de estabelecer uma relação fecunda com as
realidades humanas, acolher o novo e o bem que há em toda parte,
partilhar as próprias convicções, contribuindo para a edificação do bem
comum, pondo-se ao serviço do mundo sem ser absorvida por ele.
O documento conciliar que melhor expressa essa postura é a
constituição pastoral Gaudium et Spes (A Alegria e a Esperança),
aprovada e promulgada por Paulo VI em 1965, às vésperas do encerramento
do concílio. Esse denso texto começa com as palavras paradigmáticas: “A
alegria e a esperança, as tristezas e as angústias dos homens de hoje,
sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e
as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”.
Nele aparece a visão cristã sobre o mundo e o homem, sua dignidade,
sua existência e sua vocação; reflete-se sobre a comunidade humana e as
relações sociais, o sentido do trabalho e da cultura e sobre a
participação da Igreja, enquanto “povo de Deus” inserido na sociedade,
na promoção do bem de toda a comunidade humana.
Os cristãos e suas organizações tomam parte da história dos povos e
da grande família humana. E a Igreja, “povo de Deus”, fiel à missão
recebida de Jesus Cristo, quer estar a serviço da comunidade humana, não
zelando apenas por seus projetos internos e seu próprio bem. O papa
Francisco vem recordando isso constantemente nos seus pronunciamentos:
que ela precisa ser “uma Igreja em saída”, uma “comunidade samaritana”,
ou como “um hospital de campo”, para socorrer e assistir os feridos… Mas
também quando diz que a Igreja não pode omitir-se, nem abster-se de dar
sua contribuição para a reta ordem ética, social, econômica e política
da sociedade.
O pressuposto teológico e antropológico dessa preocupação do concílio
é a convicção de que a humanidade constitui uma única grande família de
filhos de Deus e de irmãos entre si. Por isso mesmo o empenho em favor
da dignidade e dos direitos humanos fundamentais de cada ser humano, bem
como na edificação da justiça social, da fraternidade entre todos e da
assistência a toda pessoa necessitada, é parte integrante da sua missão,
bem como da vida cristã coerente de cada membro da Igreja.
A Campanha da Fraternidade vai retomar essas intuições fecundas do
concílio e propô-las novamente à reflexão no contexto brasileiro,
durante o ano de 2015, especialmente no período da Quaresma, em que se
prepara a celebração da Páscoa cristã. O lema “Eu vim para servir”
retoma as palavras de Jesus: “Eu não vim para ser servido, mas para
servir e para entregar a minha vida pela salvação de todos” (Mc 10,45). A
promoção do verdadeiro espírito fraterno no convívio social é, sem
dúvida, um importante serviço à sociedade.
Dom Odilo P. Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo
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