EXORTAÇÃO APOSTÓLICA EVANGELII GAUDIUM DO SANTO PADRE FRANCISCO AO EPISCOPADO, AO CLERO ÀS PESSOAS CONSAGRADAS E AOS FIÉIS LEIGOS SOBRE
O ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO ACTUAL
ÍNDICE
I. Alegria que se renova e comunica [2-8]
Uma eterna novidade [11-13]
III. A nova evangelização para a transmissão da fé [14-15]
IV. A proposta desta Exortação e seus contornos [16-18]
I. Uma Igreja «em saída» [20-23]
Pastoral em conversão [25-26]
Uma renovação eclesial inadiável [27-33]
III. A partir do coração do Evangelho [34-39]
IV. A missão que se encarna nas limitações humanas [40-45]
V. Uma mãe de coração aberto [46-49]
I. Alguns desafios do mundo actual [52]
Não a uma economia da exclusão [53-54]
Não à nova idolatria do dinheiro [55-56]
Não a um dinheiro que governa em vez de servir [57-58]
Não à desigualdade social que gera violência [59-60]
Alguns desafios culturais [61-67]
Desafios da inculturação da fé [68-70]
Desafios das culturas urbanas [71-75]
II. Tentações dos agentes pastorais [76-77]
Sim ao desafio duma espiritualidade missionária [78-80]
Não à acédia egoísta [81-83]
Não ao pessimismo estéril [84-86]
Sim às relações novas geradas por Jesus Cristo [87-92]
Não ao mundanismo espiritual [93-97]
Não à guerra entre nós [98-101]
Outros desafios eclesiais [102-109]
Um povo para todos [112-114]
Um povo com muitos rostos [115-118]
Todos somos discípulos missionários [119-121]
A força evangelizadora da piedade popular [122-126]
De pessoa a pessoa [127-129]
Carismas ao serviço da comunhão evangelizadora [130-131]
Cultura, pensamento e educação [132-134]
II. A homilia [135-136]
O contexto litúrgico [137-138]
A conversa da mãe [139-141]
Palavras que abrasam os corações [142-144]
III. A preparação da pregação [145]
O culto da verdade [146-148]
A personalização da Palavra [149-151]
A leitura espiritual [152-153]
À escuta do povo [154-155]
Recursos pedagógicos [156-159]
IV. Uma evangelização para o aprofundamento do querigma [160-162]
Uma catequese querigmática e mistagógica [163-168]
O acompanhamento pessoal dos processos de crescimento [169-173]
Ao redor da Palavra de Deus [174-175]
Confissão da fé e compromisso social [178-179]
O Reino que nos solicita [180-181]
A doutrina da Igreja sobre as questões sociais [182-185]
II. A inclusão social dos pobres [186]
Unidos a Deus, ouvimos um clamor [187-192]
Fidelidade ao Evangelho, para não correr em vão [193-196]
O lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus [197-201]
Economia e distribuição das entradas [202-208]
Cuidar da fragilidade [209-216]
III. O bem comum e a paz social [217-221]
O tempo é superior ao espaço [222-225]
A unidade prevalece sobre o conflito [226-230]
A realidade é mais importante do que a ideia [231-233]
O todo é superior à parte [234-237]
IV. O diálogo social como contribuição para a paz [238-241]
O diálogo entre a fé, a razão e as ciências [242-243]
O diálogo ecuménico [244-246]
As relações com o Judaísmo [247-249]
O diálogo inter-religioso [250-254]
O diálogo social num contexto de liberdade religiosa [255-258]
I. Motivações para um renovado impulso missionário [262-263]
O encontro pessoal com o amor de Jesus que nos salva [264-267]
O prazer espiritual de ser povo [268-274]
A acção misteriosa do Ressuscitado e do seu Espírito [275-280]
A força missionária da intercessão [281-283]
II. Maria, a Mãe da evangelização [284]
O dom de Jesus ao seu povo [285-286]
A Estrela da nova evangelização [287-288]
1. A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira
daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele
são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento.
Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria. Quero, com esta
Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar para uma
nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria e indicar caminhos
para o percurso da Igreja nos próximos anos.
2. O grande risco do mundo actual, com sua múltipla e avassaladora
oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração
comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da
consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios
interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os
pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do
seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco,
certo e permanente, que correm também os crentes. Muitos caem nele,
transformando-se em pessoas ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é
a escolha duma vida digna e plena, este não é o desígnio que Deus tem
para nós, esta não é a vida no Espírito que jorra do coração de Cristo
ressuscitado.
3. Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se
encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo
ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O
procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para alguém poder pensar
que este convite não lhe diz respeito, já que «da alegria trazida pelo
Senhor ninguém é excluído»[1].
Quem arrisca, o Senhor não o desilude; e, quando alguém dá um pequeno
passo em direcção a Jesus, descobre que Ele já aguardava de braços
abertos a sua chegada. Este é o momento para dizer a Jesus Cristo:
«Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui
estou novamente para renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós.
Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me mais uma vez nos vossos braços
redentores». Como nos faz bem voltar para Ele, quando nos perdemos!
Insisto uma vez mais: Deus nunca Se cansa de perdoar, somos nós que nos
cansamos de pedir a sua misericórdia. Aquele que nos convidou a perdoar
«setenta vezes sete» (Mt 18, 22) dá-nos o exemplo: Ele perdoa
setenta vezes sete. Volta uma vez e outra a carregar-nos aos seus
ombros. Ninguém nos pode tirar a dignidade que este amor infinito e
inabalável nos confere. Ele permite-nos levantar a cabeça e recomeçar,
com uma ternura que nunca nos defrauda e sempre nos pode restituir a
alegria. Não fujamos da ressurreição de Jesus; nunca nos demos por
mortos, suceda o que suceder. Que nada possa mais do que a sua vida que
nos impele para diante!
4. Os livros do Antigo Testamento preanunciaram a alegria da
salvação, que havia de tornar-se superabundante nos tempos messiânicos. O
profeta Isaías dirige-se ao Messias esperado, saudando-O com regozijo:
«Multiplicaste a alegria, aumentaste o júbilo» (9, 2). E anima os
habitantes de Sião a recebê-Lo com cânticos: «Exultai de alegria!» (12,
6). A quem já O avistara no horizonte, o profeta convida-o a tornar-se
mensageiro para os outros: «Sobe a um alto monte, arauto de Sião! Grita
com voz forte, arauto de Jerusalém» (40, 9). A criação inteira participa
nesta alegria da salvação: «Cantai, ó céus! Exulta de alegria, ó terra!
Rompei em exclamações, ó montes! Na verdade, o Senhor consola o seu
povo e se compadece dos desamparados» (49, 13).
Zacarias, vendo o dia do Senhor, convida a
vitoriar o Rei que chega «humilde, montado num jumento»: «Exulta de
alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis
que o teu rei vem a ti. Ele é justo e vitorioso» (9, 9). Mas o convite
mais tocante talvez seja o do profeta Sofonias, que nos mostra o próprio
Deus como um centro irradiante de festa e de alegria, que quer
comunicar ao seu povo este júbilo salvífico. Enche-me de vida reler este
texto: «O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador!
Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele
dança e grita de alegria por tua causa» (3, 17).
É a alegria que se vive no meio das
pequenas coisas da vida quotidiana, como resposta ao amoroso convite de
Deus nosso Pai: «Meu filho, se tens com quê, trata-te bem (...). Não te
prives da felicidade presente» (Sir 14, 11.14). Quanta ternura paterna se vislumbra por detrás destas palavras!
5. O Evangelho, onde resplandece gloriosa a Cruz de Cristo,
convida insistentemente à alegria. Apenas alguns exemplos: «Alegra-te» é
a saudação do anjo a Maria (Lc 1, 28). A visita de Maria a Isabel faz com que João salte de alegria no ventre de sua mãe (cf. Lc 1, 41). No seu cântico, Maria proclama: «O meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, 47). E, quando Jesus começa o seu ministério, João exclama: «Esta é a minha alegria! E tornou-se completa!» (Jo 3, 29). O próprio Jesus «estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo» (Lc
10, 21). A sua mensagem é fonte de alegria: «Manifestei-vos estas
coisas, para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja
completa» (Jo 15, 11). A nossa alegria cristã brota da fonte do
seu coração transbordante. Ele promete aos seus discípulos: «Vós haveis
de estar tristes, mas a vossa tristeza há-de converter-se em alegria» (Jo
16, 20). E insiste: «Eu hei-de ver-vos de novo! Então, o vosso coração
há-de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria» (Jo 16, 22). Depois, ao verem-No ressuscitado, «encheram-se de alegria» (Jo
20, 20). O livro dos Actos dos Apóstolos conta que, na primitiva
comunidade, «tomavam o alimento com alegria» (2, 46). Por onde passaram
os discípulos, «houve grande alegria» (8, 8); e eles, no meio da
perseguição, «estavam cheios de alegria» (13, 52). Um eunuco,
recém-baptizado, «seguiu o seu caminho cheio de alegria» (8, 39); e o
carcereiro «entregou-se, com a família, à alegria de ter acreditado em
Deus» (16, 34). Porque não havemos de entrar, também nós, nesta torrente
de alegria?
6. Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem
Páscoa. Reconheço, porém, que a alegria não se vive da mesma maneira em
todas as etapas e circunstâncias da vida, por vezes muito duras.
Adapta-se e transforma-se, mas sempre permanece pelo menos como um feixe
de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário,
sermos infinitamente amados. Compreendo as pessoas que se vergam à
tristeza por causa das graves dificuldades que têm de suportar, mas aos
poucos é preciso permitir que a alegria da fé comece a despertar, como
uma secreta mas firme confiança, mesmo no meio das piores angústias: «A
paz foi desterrada da minha alma, já nem sei o que é a felicidade (…).
Isto, porém, guardo no meu coração; por isso, mantenho a esperança. É
que a misericórdia do Senhor não acaba, não se esgota a sua compaixão.
Cada manhã ela se renova; é grande a tua fidelidade. (...) Bom é esperar
em silêncio a salvação do Senhor» (Lm 3, 17.21-23.26).
7. A tentação apresenta-se, frequentemente, sob forma de desculpas
e queixas, como se tivesse de haver inúmeras condições para ser
possível a alegria. Habitualmente isto acontece, porque «a sociedade
técnica teve a possibilidade de multiplicar as ocasiões de prazer; no
entanto ela encontra dificuldades grandes no engendrar também a
alegria».[2]
Posso dizer que as alegrias mais belas e espontâneas, que vi ao longo
da minha vida, são as alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a
que se agarrar. Recordo também a alegria genuína daqueles que, mesmo no
meio de grandes compromissos profissionais, souberam conservar um
coração crente, generoso e simples. De várias maneiras, estas alegrias
bebem na fonte do amor maior, que é o de Deus, a nós manifestado em
Jesus Cristo. Não me cansarei de repetir estas palavras de Bento XVI
que nos levam ao centro do Evangelho: «Ao início do ser cristão, não há
uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um
acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta
forma, o rumo decisivo».[3]
8. Somente graças a este encontro – ou reencontro – com o amor de
Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos resgatados da nossa
consciência isolada e da auto-referencialidade. Chegamos a ser
plenamente humanos, quando somos mais do que humanos, quando permitimos a
Deus que nos conduza para além de nós mesmos a fim de alcançarmos o
nosso ser mais verdadeiro. Aqui está a fonte da acção evangelizadora.
Porque, se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida,
como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?
9. O bem tende sempre a comunicar-se. Toda a experiência autêntica
de verdade e de beleza procura, por si mesma, a sua expansão; e
qualquer pessoa que viva uma libertação profunda adquire maior
sensibilidade face às necessidades dos outros. E, uma vez comunicado, o
bem radica-se e desenvolve-se. Por isso, quem deseja viver com dignidade
e em plenitude, não tem outro caminho senão reconhecer o outro e buscar
o seu bem. Assim, não nos deveriam surpreender frases de São Paulo como
estas: «O amor de Cristo nos absorve completamente» (2 Cor 5, 14); «ai de mim, se eu não evangelizar!» (1 Cor 9, 16).
10. A proposta é viver a um nível superior, mas não com menor
intensidade: «Na doação, a vida se fortalece; e se enfraquece no
comodismo e no isolamento. De facto, os que mais desfrutam da vida são
os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de
comunicar a vida aos demais»[4].
Quando a Igreja faz apelo ao compromisso evangelizador, não faz mais do
que indicar aos cristãos o verdadeiro dinamismo da realização pessoal:
«Aqui descobrimos outra profunda lei da realidade: “A vida se alcança e
amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros”. Isto é,
definitivamente, a missão»[5].
Consequentemente, um evangelizador não deveria ter constantemente uma
cara de funeral. Recuperemos e aumentemos o fervor de espírito, «a suave
e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear
com lágrimas! (...) E que o mundo do nosso tempo, que procura ora na
angústia ora com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de
evangelizadores tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos, mas
sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem
recebeu primeiro em si a alegria de Cristo»[6].
11. Um anúncio renovado proporciona aos crentes, mesmo tíbios ou
não praticantes, uma nova alegria na fé e uma fecundidade
evangelizadora. Na realidade, o seu centro e a sua essência são sempre o
mesmo: o Deus que manifestou o seu amor imenso em Cristo morto e
ressuscitado. Ele torna os seus fiéis sempre novos; ainda que sejam
idosos, «renovam as suas forças. Têm asas como a águia, correm sem se
cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40, 31). Cristo é a «Boa Nova de valor eterno» (Ap 14, 6), sendo «o mesmo ontem, hoje e pelos séculos» (Heb
13, 8), mas a sua riqueza e a sua beleza são inesgotáveis. Ele é sempre
jovem, e fonte de constante novidade. A Igreja não cessa de se
maravilhar com a «profundidade de riqueza, de sabedoria e de ciência de
Deus» (Rm 11, 33). São João da Cruz dizia: «Esta espessura de
sabedoria e ciência de Deus é tão profunda e imensa, que, por mais que a
alma saiba dela, sempre pode penetrá-la mais profundamente».[7] Ou ainda, como afirmava Santo Ireneu: «Na sua vinda, [Cristo] trouxe consigo toda a novidade».[8]
Com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a nossa vida e a nossa
comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse períodos obscuros e
fraquezas eclesiais, nunca envelhece. Jesus Cristo pode romper também
os esquemas enfadonhos em que pretendemos aprisioná-Lo, e surpreende-nos
com a sua constante criatividade divina. Sempre que procuramos voltar à
fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas
estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais
eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo actual.
Na realidade, toda a acção evangelizadora autêntica é sempre «nova».
12. Embora esta missão nos exija uma entrega generosa, seria um
erro considerá-la como uma heróica tarefa pessoal, dado que ela é,
primariamente e acima de tudo o que possamos sondar e compreender, obra
de Deus. Jesus é «o primeiro e o maior evangelizador».[9]
Em qualquer forma de evangelização, o primado é sempre de Deus, que
quis chamar-nos para cooperar com Ele e impelir-nos com a força do seu
Espírito. A verdadeira novidade é aquela que o próprio Deus
misteriosamente quer produzir, aquela que Ele inspira, aquela que Ele
provoca, aquela que Ele orienta e acompanha de mil e uma maneiras. Em
toda a vida da Igreja, deve-se sempre manifestar que a iniciativa
pertence a Deus, «porque Ele nos amou primeiro» (1 Jo 4, 19) e é «só Deus que faz crescer» (1 Cor
3, 7). Esta convicção permite-nos manter a alegria no meio duma tarefa
tão exigente e desafiadora que ocupa inteiramente a nossa vida. Pede-nos
tudo, mas ao mesmo tempo dá-nos tudo.
13. E também não deveremos entender a novidade desta missão como
um desenraizamento, como um esquecimento da história viva que nos acolhe
e impele para diante. A memória é uma dimensão da nossa fé, que, por
analogia com a memória de Israel, poderíamos chamar «deuteronómica».
Jesus deixa-nos a Eucaristia como memória quotidiana da Igreja, que nos
introduz cada vez mais na Páscoa (cf. Lc 22, 19). A alegria
evangelizadora refulge sempre sobre o horizonte da memória agradecida: é
uma graça que precisamos de pedir. Os Apóstolos nunca mais esqueceram o
momento em que Jesus lhes tocou o coração: «Eram as quatro horas da
tarde» (Jo 1, 39). A memória faz-nos presente, juntamente com Jesus, uma verdadeira «nuvem de testemunhas» (Heb
12, 1). De entre elas, distinguem-se algumas pessoas que incidiram de
maneira especial para fazer germinar a nossa alegria crente:
«Recordai-vos dos vossos guias, que vos pregaram a palavra de Deus» (Heb
13, 7). Às vezes, trata-se de pessoas simples e próximas de nós, que
nos iniciaram na vida da fé: «Trago à memória a tua fé sem fingimento,
que se encontrava já na tua avó Lóide e na tua mãe Eunice» (2 Tm 1, 5). O crente é, fundamentalmente, «uma pessoa que faz memória».
14. À escuta do Espírito, que nos ajuda a reconhecer
comunitariamente os sinais dos tempos, celebrou-se de 7 a 28 de Outubro
de 2012 a XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre o
tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã. Lá foi recordado que a nova evangelização interpela a todos, realizando-se fundamentalmente em três âmbitos.[10] Em primeiro lugar, mencionamos o âmbito da pastoral ordinária,
«animada pelo fogo do Espírito a fim de incendiar os corações dos fiéis
que frequentam regularmente a comunidade, reunindo-se no dia do Senhor,
para se alimentarem da sua Palavra e do Pão de vida eterna»[11].
Devem ser incluídos também neste âmbito os fiéis que conservam uma fé
católica intensa e sincera, exprimindo-a de diversos modos, embora não
participem frequentemente no culto. Esta pastoral está orientada para o
crescimento dos crentes, a fim de corresponderem cada vez melhor e com
toda a sua vida ao amor de Deus.
Em segundo lugar, lembramos o âmbito das «pessoas baptizadas que, porém, não vivem as exigências do Baptismo»,[12]
não sentem uma pertença cordial à Igreja e já não experimentam a
consolação da fé. Mãe sempre solícita, a Igreja esforça-se para que elas
vivam uma conversão que lhes restitua a alegria da fé e o desejo de se
comprometerem com o Evangelho.
Por fim, frisamos que a evangelização está essencialmente relacionada com a proclamação do Evangelho àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram.
Muitos deles buscam secretamente a Deus, movidos pela nostalgia do seu
rosto, mesmo em países de antiga tradição cristã. Todos têm o direito de
receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir
ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem
partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete
apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas «por atracção».[13]
15. João Paulo II convidou-nos a reconhecer que «não se pode
perder a tensão para o anúncio» àqueles que estão longe de Cristo,
«porque esta é a tarefa primária da Igreja»[14]. A actividade missionária «ainda hoje representa o máximo desafio para a Igreja»[15] e «a causa missionária deve ser (…) a primeira de todas as causas».[16] Que sucederia se tomássemos realmente a sério estas palavras? Simplesmente reconheceríamos que a acção missionária é o paradigma de toda a obra da Igreja. Nesta linha, os Bispos latino-americanos afirmaram que «não podemos ficar tranquilos, em espera passiva, em nossos templos»,[17] sendo necessário passar «de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária».[18]
Esta tarefa continua a ser a fonte das maiores alegrias para a Igreja:
«Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do que
por noventa e nove justos que não necessitam de conversão» (Lc 15, 7).
16. Com prazer, aceitei o convite dos Padres sinodais para redigir esta Exortação.[19]
Para o efeito, recolho a riqueza dos trabalhos do Sínodo; consultei
também várias pessoas e pretendo, além disso, exprimir as preocupações
que me movem neste momento concreto da obra evangelizadora da Igreja. Os
temas relacionados com a evangelização no mundo actual, que se poderiam
desenvolver aqui, são inumeráveis. Mas renunciei a tratar
detalhadamente esta multiplicidade de questões que devem ser objecto de
estudo e aprofundamento cuidadoso. Penso, aliás, que não se deve esperar
do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as
questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo. Não convém que o Papa
substitua os episcopados locais no discernimento de todas as
problemáticas que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a
necessidade de proceder a uma salutar «descentralização».
17. Aqui escolhi propor algumas directrizes que possam encorajar e
orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora, cheia de
ardor e dinamismo. Neste quadro e com base na doutrina da Constituição
dogmática Lumen gentium, decidi, entre outros temas, de me deter amplamente sobre as seguintes questões:
a) A reforma da Igreja em saída missionária.
b) As tentações dos agentes pastorais.
c) A Igreja vista como a totalidade do povo de Deus que evangeliza.
d) A homilia e a sua preparação.
e) A inclusão social dos pobres.
f) A paz e o diálogo social.
g) As motivações espirituais para o compromisso missionário.
18. Demorei-me nestes temas, desenvolvendo-os dum modo que talvez
possa parecer excessivo. Mas não o fiz com a intenção de oferecer um
tratado, mas só para mostrar a relevante incidência prática destes
assuntos na missão actual da Igreja. De facto, todos eles ajudam a
delinear um preciso estilo evangelizador, que convido a assumir em qualquer actividade que se realize.
E, desta forma, podemos assumir, no meio do nosso trabalho diário, esta
exortação da Palavra de Deus: «Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo
vos digo: alegrai-vos!» (Fl 4, 4).
19. A evangelização obedece ao mandato missionário de Jesus: «Ide,
pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai,
do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos
tenho mandado» (Mt 28, 19-20). Nestes versículos, aparece o
momento em que o Ressuscitado envia os seus a pregar o Evangelho em
todos os tempos e lugares, para que a fé n’Ele se estenda a todos os
cantos da terra.
20. Na Palavra de Deus, aparece constantemente este dinamismo de
«saída», que Deus quer provocar nos crentes. Abraão aceitou a chamada
para partir rumo a uma nova terra (cf. Gn 12, 1-3). Moisés ouviu a chamada de Deus: «Vai; Eu te envio» (Ex 3, 10), e fez sair o povo para a terra prometida (cf. Ex 3, 17). A Jeremias disse: «Irás aonde Eu te enviar» (Jr
1, 7). Naquele «ide» de Jesus, estão presentes os cenários e os
desafios sempre novos da missão evangelizadora da Igreja, e hoje todos
somos chamados a esta nova «saída» missionária. Cada cristão e cada
comunidade há-de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas
todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria
comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam
da luz do Evangelho.
21. A alegria do Evangelho, que enche a vida da comunidade dos
discípulos, é uma alegria missionária. Experimentam-na os setenta e dois
discípulos, que voltam da missão cheios de alegria (cf. Lc 10,
17). Vive-a Jesus, que exulta de alegria no Espírito Santo e louva o
Pai, porque a sua revelação chega aos pobres e aos pequeninos
(cf. Lc 10, 21). Sentem-na, cheios de admiração, os primeiros que se convertem no Pentecostes, ao ouvir «cada um na sua própria língua» (Act 2, 6) a pregação dos Apóstolos. Esta alegria é um sinal de que o Evangelho foi anunciado e está a frutificar. Mas contém sempre a dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si mesmo, de caminhar e de semear sempre de novo, sempre mais além. O Senhor diz: «Vamos para outra parte, para as aldeias vizinhas, a fim de pregar aí, pois foi para isso que Eu vim» (Mc 1, 38). Ele, depois de lançar a semente num lugar, não se demora lá a explicar melhor ou a cumprir novos sinais, mas o Espírito leva-O a partir para outras aldeias.
(cf. Lc 10, 21). Sentem-na, cheios de admiração, os primeiros que se convertem no Pentecostes, ao ouvir «cada um na sua própria língua» (Act 2, 6) a pregação dos Apóstolos. Esta alegria é um sinal de que o Evangelho foi anunciado e está a frutificar. Mas contém sempre a dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si mesmo, de caminhar e de semear sempre de novo, sempre mais além. O Senhor diz: «Vamos para outra parte, para as aldeias vizinhas, a fim de pregar aí, pois foi para isso que Eu vim» (Mc 1, 38). Ele, depois de lançar a semente num lugar, não se demora lá a explicar melhor ou a cumprir novos sinais, mas o Espírito leva-O a partir para outras aldeias.
22. A Palavra possui, em si mesma, uma tal potencialidade, que não
a podemos prever. O Evangelho fala da semente que, uma vez lançada à
terra, cresce por si mesma, inclusive quando o agricultor dorme (cf. Mc
4, 26-29). A Igreja deve aceitar esta liberdade incontrolável da
Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão variadas que muitas
vezes nos escapam, superando as nossas previsões e quebrando os nossos
esquemas.
23. A intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e
a comunhão «reveste essencialmente a forma de comunhão missionária».[20]
Fiel ao modelo do Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para anunciar o
Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem
demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o
povo, não se pode excluir ninguém; assim foi anunciada pelo anjo aos
pastores de Belém: «Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que
o será para todo o povo» (Lc 2, 10). O Apocalipse fala de «uma Boa Nova de valor eterno para anunciar aos habitantes da terra: a todas as nações, tribos, línguas e povos» (Ap 14, 6).
24. A Igreja «em saída» é a comunidade de discípulos missionários
que «primeireiam», que se envolvem, que acompanham, que frutificam e
festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo –, tomam a
iniciativa! A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a
iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4, 10), e, por isso, ela
sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro,
procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para
convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer
misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e
a sua força difusiva. Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa! Como
consequência, a Igreja sabe «envolver-se». Jesus lavou os pés aos seus
discípulos. O Senhor envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se de joelhos
diante dos outros para os lavar; mas, logo a seguir, diz aos discípulos:
«Sereis felizes se o puserdes em prática» (Jo 13, 17). Com obras
e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros,
encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e
assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Os
evangelizadores contraem assim o «cheiro das ovelhas», e estas escutam a
sua voz. Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a
«acompanhar». Acompanha a humanidade em todos os seus processos, por
mais duros e demorados que sejam. Conhece as longas esperas e a
suportação apostólica. A evangelização patenteia muita paciência, e
evita deter-se a considerar as limitações. Fiel ao dom do Senhor, sabe
também «frutificar». A comunidade evangelizadora mantém-se atenta aos
frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e não perde a paz
por causa do joio. O semeador, quando vê surgir o joio no meio do
trigo, não tem reacções lastimosas ou alarmistas. Encontra o modo para
fazer com que a Palavra se encarne numa situação concreta e dê frutos de
vida nova, apesar de serem aparentemente imperfeitos ou defeituosos. O
discípulo sabe oferecer a vida inteira e jogá-la até ao martírio como
testemunho de Jesus Cristo, mas o seu sonho não é estar cheio de
inimigos, mas antes que a Palavra seja acolhida e manifeste a sua força
libertadora e renovadora. Por fim, a comunidade evangelizadora jubilosa
sabe sempre «festejar»: celebra e festeja cada pequena vitória, cada
passo em frente na evangelização. No meio desta exigência diária de
fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na
liturgia. A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia,
que é também celebração da actividade evangelizadora e fonte dum
renovado impulso para se dar.
25. Não ignoro que hoje os documentos não suscitam o mesmo
interesse que noutras épocas, acabando rapidamente esquecidos. Apesar
disso sublinho que, aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui um
significado programático e tem consequências importantes. Espero que
todas as comunidades se esforcem por actuar os meios necessários para
avançar no caminho duma conversão pastoral e missionária, que não pode
deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos serve uma «simples
administração».[21] Constituamo-nos em «estado permanente de missão»,[22] em todas as regiões da terra.
26. Paulo VI convidou a alargar o apelo à renovação de modo que
ressalte, com força, que não se dirige apenas aos indivíduos, mas à
Igreja inteira. Lembremos este texto memorável, que não perdeu a sua
força interpeladora: «A Igreja deve aprofundar a consciência de si
mesma, meditar sobre o seu próprio mistério (...). Desta consciência
esclarecida e operante deriva espontaneamente um desejo de comparar a
imagem ideal da Igreja, tal como Cristo a viu, quis e amou, ou seja,
como sua Esposa santa e imaculada (Ef 5, 27), com o rosto real
que a Igreja apresenta hoje. (…) Em consequência disso, surge uma
necessidade generosa e quase impaciente de renovação, isto é, de emenda
dos defeitos, que aquela consciência denuncia e rejeita, como se fosse
um exame interior ao espelho do modelo que Cristo nos deixou de Si
mesmo».[23]
O Concílio Vaticano II apresentou a
conversão eclesial como a abertura a uma reforma permanente de si mesma
por fidelidade a Jesus Cristo: «Toda a renovação da Igreja consiste
essencialmente numa maior fidelidade à própria vocação. (…) A Igreja
peregrina é chamada por Cristo a esta reforma perene. Como instituição
humana e terrena, a Igreja necessita perpetuamente desta reforma».[24]
Há estruturas eclesiais que podem chegar a
condicionar um dinamismo evangelizador; de igual modo, as boas
estruturas servem quando há uma vida que as anima, sustenta e avalia.
Sem vida nova e espírito evangélico autêntico, sem «fidelidade da Igreja
à própria vocação», toda e qualquer nova estrutura se corrompe em pouco
tempo.
27. Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo,
para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a
estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização
do mundo actual que à auto-preservação. A reforma das estruturas, que a
conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com
que todas elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em
todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os
agentes pastorais em atitude constante de «saída» e, assim, favoreça a
resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade.
Como dizia João Paulo II aos Bispos da Oceânia, «toda a renovação na
Igreja há-de ter como alvo a missão, para não cair vítima duma espécie
de introversão eclesial».[25]
28. A paróquia não é uma estrutura caduca; precisamente porque
possui uma grande plasticidade, pode assumir formas muito diferentes que
requerem a docilidade e a criatividade missionária do Pastor e da
comunidade. Embora não seja certamente a única instituição
evangelizadora, se for capaz de se reformar e adaptar constantemente,
continuará a ser «a própria Igreja que vive no meio das casas dos seus
filhos e das suas filhas».[26]
Isto supõe que esteja realmente em contacto com as famílias e com a
vida do povo, e não se torne uma estrutura complicada, separada das
pessoas, nem um grupo de eleitos que olham para si mesmos. A paróquia é
presença eclesial no território, âmbito para a escuta da Palavra, o
crescimento da vida cristã, o diálogo, o anúncio, a caridade generosa, a
adoração e a celebração.[27] Através de todas as suas actividades, a paróquia incentiva e forma os seus membros para serem agentes da evangelização.[28]
É comunidade de comunidades, santuário onde os sedentos vão beber para
continuarem a caminhar, e centro de constante envio missionário. Temos,
porém, de reconhecer que o apelo à revisão e renovação das paróquias
ainda não deu suficientemente fruto, tornando-as ainda mais próximas das
pessoas, sendo âmbitos de viva comunhão e participação e orientando-as
completamente para a missão.
29. As outras instituições eclesiais, comunidades de base e
pequenas comunidades, movimentos e outras formas de associação são uma
riqueza da Igreja que o Espírito suscita para evangelizar todos os
ambientes e sectores. Frequentemente trazem um novo ardor evangelizador e
uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam a Igreja. Mas é muito
salutar que não percam o contacto com esta realidade muito rica da
paróquia local e que se integrem de bom grado na pastoral orgânica da
Igreja particular.[29] Esta integração evitará que fiquem só com uma parte do Evangelho e da Igreja, ou que se transformem em nómades sem raízes.
30. Cada Igreja particular, porção da Igreja Católica sob a guia
do seu Bispo, está, também ela, chamada à conversão missionária. Ela é o
sujeito primário da evangelização,[30]
enquanto é a manifestação concreta da única Igreja num lugar da terra
e, nela, «está verdadeiramente presente e opera a Igreja de Cristo, una,
santa, católica e apostólica».[31]
É a Igreja encarnada num espaço concreto, dotada de todos os meios de
salvação dados por Cristo, mas com um rosto local. A sua alegria de
comunicar Jesus Cristo exprime-se tanto na sua preocupação por
anunciá-Lo noutros lugares mais necessitados, como numa constante saída
para as periferias do seu território ou para os novos âmbitos
socioculturais.[32] Procura estar sempre onde fazem mais falta a luz e a vida do Ressuscitado.[33]
Para que este impulso missionário seja cada vez mais intenso, generoso
e fecundo, exorto também cada uma das Igrejas particulares a entrar
decididamente num processo de discernimento, purificação e reforma.
31. O Bispo deve favorecer sempre a comunhão missionária na sua
Igreja diocesana, seguindo o ideal das primeiras comunidades cristãs, em
que os crentes tinham um só coração e uma só alma (cf. Act 4,
32) . Para isso, às vezes pôr-se-á à frente para indicar a estrada e
sustentar a esperança do povo, outras vezes manter-se-á simplesmente no
meio de todos com a sua proximidade simples e misericordiosa e, em
certas circunstâncias, deverá caminhar atrás do povo, para ajudar
aqueles que se atrasaram e sobretudo porque o próprio rebanho possui o
olfacto para encontrar novas estradas. Na sua missão de promover uma
comunhão dinâmica, aberta e missionária, deverá estimular e procurar o
amadurecimento dos organismos de participação propostos pelo Código de Direito Canónico [34]
e de outras formas de diálogo pastoral, com o desejo de ouvir a todos, e
não apenas alguns sempre prontos a lisonjeá-lo. Mas o objectivo destes
processos participativos não há-de ser principalmente a organização
eclesial, mas o sonho missionário de chegar a todos.
32. Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo
pensar também numa conversão do papado. Compete-me, como Bispo de Roma,
permanecer aberto às sugestões tendentes a um exercício do meu
ministério que o torne mais fiel ao significado que Jesus Cristo
pretendeu dar-lhe e às necessidades actuais da evangelização. O Papa
João Paulo II pediu que o ajudassem a encontrar «uma forma de exercício
do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua
missão, se abra a uma situação nova».[35]
Pouco temos avançado neste sentido. Também o papado e as estruturas
centrais da Igreja universal precisam de ouvir este apelo a uma
conversão pastoral. O Concílio Vaticano II afirmou que, à semelhança das
antigas Igrejas patriarcais, as conferências episcopais podem «aportar
uma contribuição múltipla e fecunda, para que o sentimento colegial leve
a aplicações concretas».[36]
Mas este desejo não se realizou plenamente, porque ainda não foi
suficientemente explicitado um estatuto das conferências episcopais que
as considere como sujeitos de atribuições concretas, incluindo alguma
autêntica autoridade doutrinal.[37] Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária.
33. A pastoral em chave missionária exige o abandono deste cómodo
critério pastoral: «fez-se sempre assim». Convido todos a serem ousados e
criativos nesta tarefa de repensar os objectivos, as estruturas, o
estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades. Uma
identificação dos fins, sem uma condigna busca comunitária dos meios
para os alcançar, está condenada a traduzir-se em mera fantasia. A todos
exorto a aplicarem, com generosidade e coragem, as orientações deste
documento, sem impedimentos nem receios. Importante é não caminhar
sozinho, mas ter sempre em conta os irmãos e, de modo especial, a guia
dos Bispos, num discernimento pastoral sábio e realista.
34. Se pretendemos colocar tudo em chave missionária, isso
aplica-se também à maneira de comunicar a mensagem. No mundo actual, com
a velocidade das comunicações e a selecção interessada dos conteúdos
feita pelos mass-media, a mensagem que anunciamos corre mais do
que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos seus
aspectos secundários. Consequentemente, algumas questões que fazem parte
da doutrina moral da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá sentido.
O problema maior ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então
identificada com tais aspectos secundários, que, apesar de serem
relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de
Jesus Cristo. Portanto, convém ser realistas e não dar por suposto que
os nossos interlocutores conhecem o horizonte completo daquilo que
dizemos ou que eles podem relacionar o nosso discurso com o núcleo
essencial do Evangelho que lhe confere sentido, beleza e fascínio.
35. Uma pastoral em chave missionária não está obsessionada pela
transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam
impor à força de insistir. Quando se assume um objectivo pastoral e um
estilo missionário, que chegue realmente a todos sem excepções nem
exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais
importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário. A
proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade,
e assim se torna mais convincente e radiosa.
36. Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e
são acreditadas com a mesma fé, mas algumas delas são mais importantes
por exprimir mais directamente o coração do Evangelho. Neste núcleo
fundamental, o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado.
Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que «existe uma ordem ou
“hierarquia” das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o
fundamento da fé cristã é diferente».[38] Isto é válido tanto para os dogmas da fé como para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina moral.
37. São Tomás de Aquino ensinava que, também na mensagem moral da Igreja, há uma hierarquia nas virtudes e acções que delas procedem.[39] Aqui o que conta é, antes de mais nada, «a fé que actua pelo amor» (Gal
5, 6). As obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais
perfeita da graça interior do Espírito: «O elemento principal da Nova
Lei é a graça do Espírito Santo, que se manifesta através da fé que
opera pelo amor».[40]
Por isso afirma que, relativamente ao agir exterior, a misericórdia é a
maior de todas as virtudes: «Em si mesma, a misericórdia é a maior das
virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se sobre os outros e – o
que mais conta – remediar as misérias alheias. Ora, isto é tarefa
especialmente de quem é superior; é por isso que se diz que é próprio de
Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua
omnipotência».[41]
38. É importante tirar as consequências pastorais desta doutrina
conciliar, que recolhe uma antiga convicção da Igreja. Antes de mais
nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário que haja
uma proporção adequada. Esta reconhece-se na frequência com que se
mencionam alguns temas e nas acentuações postas na pregação. Por
exemplo, se um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a
temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou sobre a
justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente
aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e na
catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça,
mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus.
39. Tal como existe uma unidade orgânica entre as virtudes que
impede de excluir qualquer uma delas do ideal cristão, assim também
nenhuma verdade é negada. Não é preciso mutilar a integridade da
mensagem do Evangelho. Além disso, cada verdade entende-se melhor se a
colocarmos em relação com a totalidade harmoniosa da mensagem cristã: e,
neste contexto, todas as verdades têm a sua própria importância e
iluminam-se reciprocamente. Quando a pregação é fiel ao Evangelho,
manifesta-se com clareza a centralidade de algumas verdades e fica claro
que a pregação moral cristã não é uma ética estóica, é mais do que uma
ascese, não é uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e
erros. O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos
ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para
procurar o bem de todos. Este convite não há-de ser obscurecido em
nenhuma circunstância! Todas as virtudes estão ao serviço desta resposta
de amor. Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício
moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo
este o nosso pior perigo; é que, então, não estaremos propriamente a
anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que
derivam de certas opções ideológicas. A mensagem correrá o risco de
perder o seu frescor e já não ter «o perfume do Evangelho».
40. A Igreja, que é discípula missionária, tem necessidade de
crescer na sua interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da
verdade. A tarefa dos exegetas e teólogos ajuda a «amadurecer o juízo
da Igreja».[42]
Embora de modo diferente, fazem-no também as outras ciências.
Referindo-se às ciências sociais, por exemplo, João Paulo II disse que a
Igreja presta atenção às suas contribuições «para obter indicações
concretas que a ajudem no cumprimento da sua missão de Magistério».[43]
Além disso, dentro da Igreja, há inúmeras questões à volta das quais se
indaga e reflecte com grande liberdade. As diversas linhas de
pensamento filosófico, teológico e pastoral, se se deixam harmonizar
pelo Espírito no respeito e no amor, podem fazer crescer a Igreja,
enquanto ajudam a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. A
quantos sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por
todos, isto poderá parecer uma dispersão imperfeita; mas a realidade é
que tal variedade ajuda a manifestar e desenvolver melhor os diversos
aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho.[44]
41. Ao mesmo tempo, as enormes e rápidas mudanças culturais exigem
que prestemos constante atenção ao tentar exprimir as verdades de
sempre numa linguagem que permita reconhecer a sua permanente novidade; é
que, no depósito da doutrina cristã, «uma coisa é a substância (...) e
outra é a formulação que a reveste».[45]
Por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo que
os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e
compreendem, é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus
Cristo. Com a santa intenção de lhes comunicar a verdade sobre Deus e o
ser humano, nalgumas ocasiões, damos-lhes um falso deus ou um ideal
humano que não é verdadeiramente cristão. Deste modo, somos fiéis a uma
formulação, mas não transmitimos a substância. Este é o risco mais
grave. Lembremo-nos de que «a expressão da verdade pode ser multiforme. E
a renovação das formas de expressão torna-se necessária para transmitir
ao homem de hoje a mensagem evangélica no seu significado imutável».[46]
42. Isto possui uma grande relevância no anúncio do Evangelho, se
temos verdadeiramente a peito fazer perceber melhor a sua beleza e
fazê-la acolher por todos. Em todo o caso, não poderemos jamais tornar
os ensinamentos da Igreja uma realidade facilmente compreensível e
felizmente apreciada por todos; a fé conserva sempre um aspecto de cruz,
certa obscuridade que não tira firmeza à sua adesão. Há coisas que se
compreendem e apreciam só a partir desta adesão que é irmã do amor, para
além da clareza com que se possam compreender as razões e os
argumentos. Por isso, é preciso recordar-se de que cada ensinamento da
doutrina deve situar-se na atitude evangelizadora que desperte a adesão
do coração com a proximidade, o amor e o testemunho.
43. No seu constante discernimento, a Igreja pode chegar também a
reconhecer costumes próprios não directamente ligados ao núcleo do
Evangelho, alguns muito radicados no curso da história, que hoje já não
são interpretados da mesma maneira e cuja mensagem habitualmente não é
percebida de modo adequado. Podem até ser belos, mas agora não prestam o
mesmo serviço à transmissão do Evangelho. Não tenhamos medo de os
rever! Da mesma forma, há normas ou preceitos eclesiais que podem ter
sido muito eficazes noutras épocas, mas já não têm a mesma força
educativa como canais de vida. São Tomás de Aquino sublinhava que os
preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus «são
pouquíssimos».[47]
E, citando Santo Agostinho, observava que os preceitos adicionados
posteriormente pela Igreja se devem exigir com moderação, «para não
tornar pesada a vida aos fiéis» nem transformar a nossa religião numa
escravidão, quando «a misericórdia de Deus quis que fosse livre».[48]
Esta advertência, feita há vários séculos, tem uma actualidade
tremenda. Deveria ser um dos critérios a considerar, quando se pensa
numa reforma da Igreja e da sua pregação que permita realmente chegar a
todos.
44. Aliás, tanto os Pastores como todos os fiéis que acompanham os
seus irmãos na fé ou num caminho de abertura a Deus não podem esquecer
aquilo que ensina, com muita clareza, o Catecismo da Igreja Católica:
«A imputabilidade e responsabilidade dum acto podem ser diminuídas, e
até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os
hábitos, as afeições desordenadas e outros factores psíquicos ou
sociais».[49]
Portanto, sem diminuir o valor do ideal
evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as
possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia
após dia.[50]
Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de
tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a
praticar o bem possível. Um pequeno passo, no meio de grandes limitações
humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente
correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias
dificuldades. A todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor
salvífico de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa, para além
dos seus defeitos e das suas quedas.
45. Vemos assim que o compromisso evangelizador se move por entre
as limitações da linguagem e das circunstâncias. Procura comunicar cada
vez melhor a verdade do Evangelho num contexto determinado, sem
renunciar à verdade, ao bem e à luz que pode dar quando a perfeição não é
possível. Um coração missionário está consciente destas limitações,
fazendo-se «fraco com os fracos (...) e tudo para todos» (1 Cor
9, 22). Nunca se fecha, nunca se refugia nas próprias seguranças, nunca
opta pela rigidez auto-defensiva. Sabe que ele mesmo deve crescer na
compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e
assim não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se
com a lama da estrada.
46. A Igreja «em saída» é uma Igreja com as portas abertas. Sair
em direcção aos outros para chegar às periferias humanas não significa
correr pelo mundo sem direcção nem sentido. Muitas vezes é melhor
diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos olhos e
escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à
beira do caminho. Às vezes, é como o pai do filho pródigo, que continua
com as portas abertas para, quando este voltar, poder entrar sem
dificuldade.
47. A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. Um dos
sinais concretos desta abertura é ter, por todo o lado, igrejas com as
portas abertas. Assim, se alguém quiser seguir uma moção do Espírito e
se aproximar à procura de Deus, não esbarrará com a frieza duma porta
fechada. Mas há outras portas que também não se devem fechar: todos
podem participar de alguma forma na vida eclesial, todos podem fazer
parte da comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos se deveriam
fechar por uma razão qualquer. Isto vale sobretudo quando se trata
daquele sacramento que é a «porta»: o Baptismo. A Eucaristia, embora
constitua a plenitude da vida sacramental, não é um prémio para os
perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos.[51]
Estas convicções têm também consequências pastorais, que somos chamados
a considerar com prudência e audácia. Muitas vezes agimos como
controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma
alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida
fadigosa.
48. Se a Igreja inteira assume este dinamismo missionário, há-de
chegar a todos, sem excepção. Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se
lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos
amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles
que muitas vezes são desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com
que te retribuir» (Lc 14, 14). Não devem subsistir dúvidas nem
explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, «os
pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho»,[52]
e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que
Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo
indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais
sozinhos!
49. Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo!
Repito aqui, para toda a Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos
sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja acidentada,
ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma
pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não
quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num
emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve
santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos
irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com
Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte
de sentido e de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova
o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa
protecção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos
hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão
faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37).
50. Antes de falar de algumas questões fundamentais relativas à
acção evangelizadora, convém recordar brevemente o contexto em que temos
de viver e agir. É habitual hoje falar-se dum «excesso de diagnóstico»,
que nem sempre é acompanhado por propostas resolutivas e realmente
aplicáveis. Por outro lado, também não nos seria de grande proveito um
olhar puramente sociológico, que tivesse a pretensão, com a sua
metodologia, de abraçar toda a realidade de maneira supostamente neutra e
asséptica. O que quero oferecer situa-se mais na linha dum discernimento evangélico. É o olhar do discípulo missionário que «se nutre da luz e da força do Espírito Santo».[53]
51. Não é função do Papa oferecer uma análise detalhada e completa
da realidade contemporânea, mas animo todas as comunidades a «uma
capacidade sempre vigilante de estudar os sinais dos tempos».[54]
Trata-se duma responsabilidade grave, pois algumas realidades
hodiernas, se não encontrarem boas soluções, podem desencadear processos
de desumanização tais que será difícil depois retroceder. É preciso
esclarecer o que pode ser um fruto do Reino e também o que atenta contra
o projecto de Deus. Isto implica não só reconhecer e interpretar as
moções do espírito bom e do espírito mau, mas também – e aqui está o
ponto decisivo – escolher as do espírito bom e rejeitar as do espírito
mau. Pressuponho as várias análises que ofereceram os outros documentos
do Magistério universal, bem como as propostas pelos episcopados
regionais e nacionais. Nesta Exortação, pretendo debruçar-me, brevemente
e numa perspectiva pastoral, apenas sobre alguns aspectos da realidade
que podem deter ou enfraquecer os dinamismos de renovação missionária da
Igreja, seja porque afectam a vida e a dignidade do povo de Deus, seja
porque incidem sobre os sujeitos que mais directamente participam nas
instituições eclesiais e nas tarefas de evangelização.
52. A humanidade vive, neste momento, uma viragem histórica, que
podemos constatar nos progressos que se verificam em vários campos. São
louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas, por
exemplo, no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia não
podemos esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo
vive o seu dia a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam
algumas doenças. O medo e o desespero apoderam-se do coração de
inúmeras pessoas, mesmo nos chamados países ricos. A alegria de viver
frequentemente se desvanece; crescem a falta de respeito e a violência, a
desigualdade social torna-se cada vez mais patente. É preciso lutar
para viver, e muitas vezes viver com pouca dignidade. Esta mudança de
época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos,
velozes e acumulados que se verificam no progresso científico, nas
inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos
da natureza e da vida. Estamos na era do conhecimento e da informação,
fonte de novas formas dum poder muitas vezes anónimo.
53. Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para
assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a
uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia mata.
Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não
seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é
exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo,
quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje,
tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o
poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes
massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho,
sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si
mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora.
Assim teve início a cultura do «descartável», que aliás chega a ser
promovida. Já não se trata simplesmente do fenómeno de exploração e
opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria
raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas,
na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não
são «explorados», mas resíduos, «sobras».
54. Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da «recaída
favorável» que pressupõem que todo o crescimento económico, favorecido
pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e
inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos
factos, exprime uma confiança vaga e ingénua na bondade daqueles que
detêm o poder económico e nos mecanismos sacralizados do sistema
económico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar. Para
se poder apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo
entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização
da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos
compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do
drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo
fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A cultura do
bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o mercado
oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas estas vidas
ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero espectáculo que
não nos incomoda de forma alguma.
55. Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com
o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as
nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer
que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da
primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo
bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova e cruel
versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e
sem um objectivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe
as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios
desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação
antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades:
o consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da
maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria
feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia
absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o
direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do
bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que
impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras.
Além disso, a dívida e os respectivos juros afastam os países das
possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder
de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma
evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do
poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a fagocitar
tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil,
como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado
divinizado, transformados em regra absoluta.
57. Por detrás desta atitude, escondem-se a rejeição da ética e a
recusa de Deus. Para a ética, olha-se habitualmente com um certo
desprezo sarcástico; é considerada contraproducente, demasiado humana,
porque relativiza o dinheiro e o poder. É sentida como uma ameaça,
porque condena a manipulação e degradação da pessoa. Em última
instância, a ética leva a Deus que espera uma resposta comprometida que
está fora das categorias do mercado. Para estas, se absolutizadas, Deus é
incontrolável, não manipulável e até mesmo perigoso, na medida em que
chama o ser humano à sua plena realização e à independência de qualquer
tipo de escravidão. A ética – uma ética não ideologizada – permite criar
um equilíbrio e uma ordem social mais humana. Neste sentido, animo os
peritos financeiros e os governantes dos vários países a considerarem as
palavras dum sábio da antiguidade: «Não fazer os pobres participar dos
seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas
deles, os bens que aferrolhamos».[55]
58. Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética exigiria
uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a
quem exorto a enfrentar este desafio com determinação e clarividência,
sem esquecer naturalmente a especificidade de cada contexto. O dinheiro
deve servir, e não governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem
a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os
pobres, respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade
desinteressada e a um regresso da economia e das finanças a uma ética
propícia ao ser humano.
59. Hoje, em muitas partes, reclama-se maior segurança. Mas,
enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade
e entre os vários povos será impossível desarreigar a violência.
Acusam-se da violência os pobres e as populações mais pobres, mas, sem
igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra
encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há-de
provocar a explosão. Quando a sociedade – local, nacional ou mundial –
abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos,
nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir
indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas porque a
desigualdade social provoca a reacção violenta de quantos são excluídos
do sistema, mas porque o sistema social e económico é injusto na sua
raiz. Assim como o bem tende a difundir-se, assim também o mal
consentido, que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e a
minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social,
por mais sólido que pareça. Se cada acção tem consequências, um mal
embrenhado nas estruturas duma sociedade sempre contém um potencial de
dissolução e de morte. É o mal cristalizado nas estruturas sociais
injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor. Estamos
longe do chamado «fim da história», já que as condições dum
desenvolvimento sustentável e pacífico ainda não estão adequadamente
implantadas e realizadas.
60. Os mecanismos da economia actual promovem uma exacerbação do
consumo, mas sabe-se que o consumismo desenfreado, aliado à desigualdade
social, é duplamente daninho para o tecido social. Assim, mais cedo ou
mais tarde, a desigualdade social gera uma violência que as corridas
armamentistas não resolvem nem poderão resolver jamais. Servem apenas
para tentar enganar aqueles que reclamam maior segurança, como se hoje
não se soubesse que as armas e a repressão violenta, mais do que dar
solução, criam novos e piores conflitos. Alguns comprazem-se
simplesmente em culpar, dos próprios males, os pobres e os países
pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar a solução
numa «educação» que os tranquilize e transforme em seres domesticados e
inofensivos. Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos
vêem crescer este câncer social que é a corrupção profundamente radicada
em muitos países – nos seus Governos, empresários e instituições – seja
qual for a ideologia política dos governantes.
61. Evangelizamos também procurando enfrentar os diferentes desafios que se nos podem apresentar.[56]
Às vezes, estes manifestam-se em verdadeiros ataques à liberdade
religiosa ou em novas situações de perseguição aos cristãos, que,
nalguns países, atingiram níveis alarmantes de ódio e violência. Em
muitos lugares, trata-se mais de uma generalizada indiferença
relativista, relacionada com a desilusão e a crise das ideologias que se
verificou como reacção a tudo o que pareça totalitário. Isto não
prejudica só a Igreja, mas a vida social em geral. Reconhecemos que,
numa cultura onde cada um pretende ser portador duma verdade subjectiva
própria, torna-se difícil que os cidadãos queiram inserir-se num
projecto comum que vai além dos benefícios e desejos pessoais.
62. Na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo que é
exterior, imediato, visível, rápido, superficial, provisório. O real
cede o lugar à aparência. Em muitos países, a globalização comportou uma
acelerada deterioração das raízes culturais com a invasão de tendências
pertencentes a outras culturas, economicamente desenvolvidas mas
eticamente debilitadas. Assim se exprimiram, em distintos Sínodos, os
Bispos de vários continentes. Há alguns anos, os Bispos da África, por
exemplo, retomando a Encíclica Sollicitudo rei socialis,
assinalaram que muitas vezes se quer transformar os países africanos em
meras «peças de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigantesca. Isto
verifica-se com frequência também no domínio dos meios de comunicação
social, os quais, sendo na sua maior parte geridos por centros situados
na parte norte do mundo, nem sempre têm na devida conta as prioridades e
os problemas próprios desses países e não respeitam a sua fisionomia
cultural».[57]
De igual modo, os Bispos da Ásia sublinharam «as influências externas
que estão a penetrar nas culturas asiáticas. Vão surgindo formas novas
de comportamento resultantes da orientação dos mass-media (…). Em consequência disso, os aspectos negativos dos mass-media e espectáculos estão a ameaçar os valores tradicionais».[58]
63. A fé católica de muitos povos encontra-se hoje perante o
desafio da proliferação de novos movimentos religiosos, alguns tendentes
ao fundamentalismo e outros que parecem propor uma espiritualidade sem
Deus. Isto, por um lado, é o resultado duma reacção humana contra a
sociedade materialista, consumista e individualista e, por outro, um
aproveitamento das carências da população que vive nas periferias e
zonas pobres, sobrevive no meio de grandes preocupações humanas e
procura soluções imediatas para as suas necessidades. Estes movimentos
religiosos, que se caracterizam pela sua penetração subtil, vêm colmar,
dentro do individualismo reinante, um vazio deixado pelo racionalismo
secularista. Além disso, é necessário reconhecer que, se uma parte do
nosso povo baptizado não sente a sua pertença à Igreja, isso deve-se
também à existência de estruturas com clima pouco acolhedor nalgumas das
nossas paróquias e comunidades, ou à atitude burocrática com que se dá
resposta aos problemas, simples ou complexos, da vida dos nossos povos.
Em muitas partes, predomina o aspecto administrativo sobre o pastoral,
bem como uma sacramentalização sem outras formas de evangelização.
64. O processo de secularização tende a reduzir a fé e a Igreja ao
âmbito privado e íntimo. Além disso, com a negação de toda a
transcendência, produziu-se uma crescente deformação ética, um
enfraquecimento do sentido do pecado pessoal e social e um aumento
progressivo do relativismo; e tudo isso provoca uma desorientação
generalizada, especialmente na fase tão vulnerável às mudanças da
adolescência e juventude. Como justamente observam os Bispos dos Estados
Unidos da América, enquanto a Igreja insiste na existência de normas
morais objectivas, válidas para todos, «há aqueles que apresentam esta
doutrina como injusta, ou seja, contrária aos direitos humanos básicos.
Tais alegações brotam habitualmente de uma forma de relativismo moral,
que se une consistentemente a uma confiança nos direitos absolutos dos
indivíduos. Nesta perspectiva, a Igreja é sentida como se estivesse
promovendo um convencionalismo particular e interferisse com a liberdade
individual».[59]
Vivemos numa sociedade da informação que nos satura indiscriminadamente
de dados, todos postos ao mesmo nível, e acaba por nos conduzir a uma
tremenda superficialidade no momento de enquadrar as questões morais.
Por conseguinte, torna-se necessária uma educação que ensine a pensar
criticamente e ofereça um caminho de amadurecimento nos valores.
65. Apesar de toda a corrente secularista que invade a sociedade,
em muitos países – mesmo onde o cristianismo está em minoria – a Igreja
Católica é uma instituição credível perante a opinião pública, fiável no
que diz respeito ao âmbito da solidariedade e preocupação pelos mais
indigentes. Em repetidas ocasiões, ela serviu de medianeira na solução
de problemas que afectam a paz, a concórdia, o meio ambiente, a defesa
da vida, os direitos humanos e civis, etc. E como é grande a
contribuição das escolas e das universidades católicas no mundo inteiro!
E é muito bom que assim seja. Mas, quando levantamos outras questões
que suscitam menor acolhimento público, custa-nos a demonstrar que o
fazemos por fidelidade às mesmas convicções sobre a dignidade da pessoa
humana e do bem comum.
66. A família atravessa uma crise cultural profunda, como todas as
comunidades e vínculos sociais. No caso da família, a fragilidade dos
vínculos reveste-se de especial gravidade, porque se trata da célula
básica da sociedade, o espaço onde se aprende a conviver na diferença e a
pertencer aos outros e onde os pais transmitem a fé aos seus filhos. O
matrimónio tende a ser visto como mera forma de gratificação afectiva,
que se pode constituir de qualquer maneira e modificar-se de acordo com a
sensibilidade de cada um. Mas a contribuição indispensável do
matrimónio à sociedade supera o nível da afectividade e o das
necessidades ocasionais do casal. Como ensinam os Bispos franceses, não
provém «do sentimento amoroso, efémero por definição, mas da
profundidade do compromisso assumido pelos esposos que aceitam entrar
numa união de vida total».[60]
67. O individualismo pós-moderno e globalizado favorece um estilo
de vida que debilita o desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos
entre as pessoas e distorce os vínculos familiares. A acção pastoral
deve mostrar ainda melhor que a relação com o nosso Pai exige e
incentiva uma comunhão que cura, promove e fortalece os vínculos
interpessoais. Enquanto no mundo, especialmente nalguns países, se
reacendem várias formas de guerras e conflitos, nós, cristãos,
insistimos na proposta de reconhecer o outro, de curar as feridas, de
construir pontes, de estreitar laços e de nos ajudarmos «a carregar as
cargas uns dos outros» (Gal 6, 2). Além disso, vemos hoje surgir
muitas formas de agregação para a defesa de direitos e a consecução de
nobres objectivos. Deste modo se manifesta uma sede de participação de
numerosos cidadãos, que querem ser construtores do desenvolvimento
social e cultural.
68. O substrato cristão dalguns povos – sobretudo ocidentais – é
uma realidade viva. Aqui encontramos, especialmente nos mais
necessitados, uma reserva moral que guarda valores de autêntico
humanismo cristão. Um olhar de fé sobre a realidade não pode deixar de
reconhecer o que semeia o Espírito Santo. Significaria não ter confiança
na sua acção livre e generosa pensar que não existem autênticos valores
cristãos, onde uma grande parte da população recebeu o Baptismo e
exprime de variadas maneiras a sua fé e solidariedade fraterna. Aqui há
que reconhecer muito mais que «sementes do Verbo», visto que se trata
duma autêntica fé católica com modalidades próprias de expressão e de
pertença à Igreja. Não convém ignorar a enorme importância que tem uma
cultura marcada pela fé, porque, não obstante os seus limites, esta
cultura evangelizada tem, contra os ataques do secularismo actual,
muitos mais recursos do que a mera soma dos crentes. Uma cultura popular
evangelizada contém valores de fé e solidariedade que podem provocar o
desenvolvimento duma sociedade mais justa e crente, e possui uma
sabedoria peculiar que devemos saber reconhecer com olhar agradecido.
69. Há uma necessidade imperiosa de evangelizar as culturas para
inculturar o Evangelho. Nos países de tradição católica, tratar-se-á de
acompanhar, cuidar e fortalecer a riqueza que já existe e, nos países de
outras tradições religiosas ou profundamente secularizados, há que
procurar novos processos de evangelização da cultura, ainda que suponham
projectos a longo prazo. Entretanto não podemos ignorar que há sempre
uma chamada ao crescimento: toda a cultura e todo o grupo social
necessitam de purificação e amadurecimento. No caso das culturas
populares de povos católicos, podemos reconhecer algumas fragilidades
que precisam ainda de ser curadas pelo Evangelho: o machismo, o
alcoolismo, a violência doméstica, uma escassa participação na
Eucaristia, crenças fatalistas ou supersticiosas que levam a recorrer à
bruxaria, etc. Mas o melhor ponto de partida para curar e ver-se livre
de tais fragilidades é precisamente a piedade popular.
70. Certo é também que, às vezes, se dá maior realce a formas
exteriores das tradições de grupos concretos ou a supostas revelações
privadas, que se absolutizam, do que ao impulso da piedade cristã. Há
certo cristianismo feito de devoções – próprio duma vivência individual e
sentimental da fé – que, na realidade, não corresponde a uma autêntica
«piedade popular». Alguns promovem estas expressões sem se preocupar com
a promoção social e a formação dos fiéis, fazendo-o nalguns casos para
obter benefícios económicos ou algum poder sobre os outros. Também não
podemos ignorar que, nas últimas décadas, se produziu uma ruptura na
transmissão geracional da fé cristã no povo católico. É inegável que
muitos se sentem desiludidos e deixam de se identificar com a tradição
católica, que cresceu o número de pais que não baptizam os seus filhos
nem os ensinam a rezar, e que há um certo êxodo para outras comunidades
de fé. Algumas causas desta ruptura são a falta de espaços de diálogo
familiar, a influência dos meios de comunicação, o subjectivismo
relativista, o consumismo desenfreado que o mercado incentiva, a falta
de cuidado pastoral pelos mais pobres, a inexistência dum acolhimento
cordial nas nossas instituições, e a dificuldade que sentimos em recriar
a adesão mística da fé num cenário religioso pluralista.
71. A nova Jerusalém, a cidade santa (cf. Ap 21, 2-4), é a
meta para onde peregrina toda a humanidade. É interessante que a
revelação nos diga que a plenitude da humanidade e da história se
realiza numa cidade. Precisamos de identificar a cidade a partir dum
olhar contemplativo, isto é, um olhar de fé que descubra Deus que habita
nas suas casas, nas suas ruas, nas suas praças. A presença de Deus
acompanha a busca sincera que indivíduos e grupos efectuam para
encontrar apoio e sentido para a sua vida. Ele vive entre os citadinos
promovendo a solidariedade, a fraternidade, o desejo de bem, de verdade,
de justiça. Esta presença não precisa de ser criada, mas descoberta,
desvendada. Deus não Se esconde de quantos O buscam com coração sincero,
ainda que o façam tacteando, de maneira imprecisa e incerta.
72. Na cidade, o elemento religioso é mediado por diferentes
estilos de vida, por costumes ligados a um sentido do tempo, do
território e das relações que difere do estilo das populações rurais. Na
vida quotidiana, muitas vezes os citadinos lutam para sobreviver e,
nesta luta, esconde-se um sentido profundo da existência que
habitualmente comporta também um profundo sentido religioso. Precisamos
de o contemplar para conseguirmos um diálogo parecido com o que o Senhor
teve com a Samaritana, junto do poço onde ela procurava saciar a sua
sede (cf. Jo 4, 7-26).
73. Novas culturas continuam a formar-se nestas enormes geografias
humanas onde o cristão já não costuma ser promotor ou gerador de
sentido, mas recebe delas outras linguagens, símbolos, mensagens e
paradigmas que oferecem novas orientações de vida, muitas vezes em
contraste com o Evangelho de Jesus. Uma cultura inédita palpita e está
em elaboração na cidade. O Sínodo constatou que as transformações destas
grandes áreas e a cultura que exprimem são, hoje, um lugar privilegiado
da nova evangelização.[61]
Isto requer imaginar espaços de oração e de comunhão com
características inovadoras, mais atraentes e significativas para as
populações urbanas. Os ambientes rurais, devido à influência dos mass-media, não estão imunes destas transformações culturais que também operam mudanças significativas nas suas formas de vida.
74. Torna-se necessária uma evangelização que ilumine os novos
modos de se relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente, e que
suscite os valores fundamentais. É necessário chegar aonde são
concebidas as novas histórias e paradigmas, alcançar com a Palavra de
Jesus os núcleos mais profundos da alma das cidades. Não se deve
esquecer que a cidade é um âmbito multicultural. Nas grandes cidades,
pode observar-se uma trama em que grupos de pessoas compartilham as
mesmas formas de sonhar a vida e ilusões semelhantes, constituindo-se em
novos sectores humanos, em territórios culturais, em cidades
invisíveis. Na realidade, convivem variadas formas culturais, mas
exercem muitas vezes práticas de segregação e violência. A Igreja é
chamada a ser servidora dum diálogo difícil. Enquanto há citadinos que
conseguem os meios adequados para o desenvolvimento da vida pessoal e
familiar, muitíssimos são também os «não-citadinos», os «meio-citadinos»
ou os «resíduos urbanos». A cidade dá origem a uma espécie de
ambivalência permanente, porque, ao mesmo tempo que oferece aos seus
habitantes infinitas possibilidades, interpõe também numerosas
dificuldades ao pleno desenvolvimento da vida de muitos. Esta
contradição provoca sofrimentos lancinantes. Em muitas partes do mundo,
as cidades são cenário de protestos em massa, onde milhares de
habitantes reclamam liberdade, participação, justiça e várias
reivindicações que, se não forem adequadamente interpretadas, nem pela
força poderão ser silenciadas.
75. Não podemos ignorar que, nas cidades, facilmente se desenvolve
o tráfico de drogas e de pessoas, o abuso e a exploração de menores, o
abandono de idosos e doentes, várias formas de corrupção e crime. Ao
mesmo tempo, o que poderia ser um precioso espaço de encontro e
solidariedade, transforma-se muitas vezes num lugar de retraimento e
desconfiança mútua. As casas e os bairros constroem-se mais para isolar e
proteger do que para unir e integrar. A proclamação do Evangelho será
uma base para restabelecer a dignidade da vida humana nestes contextos,
porque Jesus quer derramar nas cidades vida em abundância (cf. Jo
10, 10). O sentido unitário e completo da vida humana proposto pelo
Evangelho é o melhor remédio para os males urbanos, embora devamos
reparar que um programa e um estilo uniformes e rígidos de evangelização
não são adequados para esta realidade. Mas viver a fundo a realidade
humana e inserir-se no coração dos desafios como fermento de testemunho,
em qualquer cultura, em qualquer cidade, melhora o cristão e fecunda a
cidade.
76. Sinto uma enorme gratidão pela tarefa de quantos trabalham na
Igreja. Não quero agora deter-me na exposição das actividades dos vários
agentes pastorais, desde os Bispos até ao mais simples e ignorado dos
serviços eclesiais. Prefiro reflectir sobre os desafios que todos eles
enfrentam no meio da cultura globalizada actual. Mas, antes de tudo e
como dever de justiça, tenho a dizer que é enorme a contribuição da
Igreja no mundo actual. A nossa tristeza e vergonha pelos pecados de
alguns membros da Igreja, e pelos próprios, não devem fazer esquecer os
inúmeros cristãos que dão a vida por amor: ajudam tantas pessoas seja a
curar-se seja a morrer em paz em hospitais precários, acompanham as
pessoas que caíram escravas de diversos vícios nos lugares mais pobres
da terra, prodigalizam-se na educação de crianças e jovens, cuidam de
idosos abandonados por todos, procuram comunicar valores em ambientes
hostis, e dedicam-se de muitas outras maneiras que mostram o imenso amor
à humanidade inspirado por Deus feito homem. Agradeço o belo exemplo
que me dão tantos cristãos que oferecem a sua vida e o seu tempo com
alegria. Este testemunho faz-me muito bem e me apoia na minha aspiração
pessoal de superar o egoísmo para uma dedicação maior.
77. Apesar disso, como filhos desta época, todos estamos de algum
modo sob o influxo da cultura globalizada actual, que, sem deixar de
apresentar valores e novas possibilidades, pode também limitar-nos,
condicionar-nos e até mesmo combalir-nos. Reconheço que precisamos de
criar espaços apropriados para motivar e sanar os agentes pastorais,
«lugares onde regenerar a sua fé em Jesus crucificado e ressuscitado,
onde compartilhar as próprias questões mais profundas e as preocupações
quotidianas, onde discernir em profundidade e com critérios evangélicos
sobre a própria existência e experiência, com o objectivo de orientar
para o bem e a beleza as próprias opções individuais e sociais».[62]
Ao mesmo tempo, quero chamar a atenção para algumas tentações que
afectam, particularmente nos nossos dias, os agentes pastorais.
78. Hoje nota-se em muitos agentes pastorais, mesmo pessoas
consagradas, uma preocupação exacerbada pelos espaços pessoais de
autonomia e relaxamento, que leva a viver os próprios deveres como mero
apêndice da vida, como se não fizessem parte da própria identidade. Ao
mesmo tempo, a vida espiritual confunde-se com alguns momentos
religiosos que proporcionam algum alívio, mas não alimentam o encontro
com os outros, o compromisso no mundo, a paixão pela evangelização.
Assim, é possível notar em muitos agentes evangelizadores – não obstante
rezem – uma acentuação do individualismo, uma crise de identidade e um declínio do fervor. São três males que se alimentam entre si.
79. A cultura mediática e alguns ambientes intelectuais
transmitem, às vezes, uma acentuada desconfiança quanto à mensagem da
Igreja, e um certo desencanto. Em consequência disso, embora rezando,
muitos agentes pastorais desenvolvem uma espécie de complexo de
inferioridade que os leva a relativizar ou esconder a sua identidade
cristã e as suas convicções. Gera-se então um círculo vicioso, porque
assim não se sentem felizes com o que são nem com o que fazem, não se
sentem identificados com a missão evangelizadora, e isto debilita a
entrega. Acabam assim por sufocar a alegria da missão numa espécie de
obsessão por serem como todos os outros e terem o que possuem os demais.
Deste modo, a tarefa da evangelização torna-se forçada e dedica-se-lhe
pouco esforço e um tempo muito limitado.
80. Nos agentes pastorais, independentemente do estilo espiritual
ou da linha de pensamento que possam ter, desenvolve-se um relativismo
ainda mais perigoso que o doutrinal. Tem a ver com as opções mais
profundas e sinceras que determinam uma forma de vida concreta. Este
relativismo prático é agir como se Deus não existisse, decidir como se
os pobres não existissem, sonhar como se os outros não existissem,
trabalhar como se aqueles que não receberam o anúncio não existissem. É
impressionante como até aqueles que aparentemente dispõem de sólidas
convicções doutrinais e espirituais acabam, muitas vezes, por cair num
estilo de vida que os leva a agarrarem-se a seguranças económicas ou a
espaços de poder e de glória humana que se buscam por qualquer meio, em
vez de dar a vida pelos outros na missão. Não nos deixemos roubar o
entusiasmo missionário!
81. Quando mais precisamos dum dinamismo missionário que leve sal e
luz ao mundo, muitos leigos temem que alguém os convide a realizar
alguma tarefa apostólica e procuram fugir de qualquer compromisso que
lhes possa roubar o tempo livre. Hoje, por exemplo, tornou-se muito
difícil nas paróquias conseguir catequistas que estejam preparados e
perseverem no seu dever por vários anos. Mas algo parecido acontece com
os sacerdotes que se preocupam obsessivamente com o seu tempo pessoal.
Isto, muitas vezes, fica-se a dever a que as pessoas sentem
imperiosamente necessidade de preservar os seus espaços de autonomia,
como se uma tarefa de evangelização fosse um veneno perigoso e não uma
resposta alegre ao amor de Deus que nos convoca para a missão e nos
torna completos e fecundos. Alguns resistem a provar até ao fundo o
gosto da missão e acabam mergulhados numa acédia paralisadora.
82. O problema não está sempre no excesso de actividades, mas
sobretudo nas actividades mal vividas, sem as motivações adequadas, sem
uma espiritualidade que impregne a acção e a torne desejável. Daí que as
obrigações cansem mais do que é razoável, e às vezes façam adoecer. Não
se trata duma fadiga feliz, mas tensa, gravosa, desagradável e, em
definitivo, não assumida. Esta acédia pastoral pode ter origens
diversas: alguns caem nela por sustentarem projectos irrealizáveis e não
viverem de bom grado o que poderiam razoavelmente fazer; outros, por
não aceitarem a custosa evolução dos processos e querem que tudo caia do
Céu; outros, por se apegarem a alguns projectos ou a sonhos de sucesso
cultivados pela sua vaidade; outros, por terem perdido o contacto real
com o povo, numa despersonalização da pastoral que leva a prestar mais
atenção à organização do que às pessoas, acabando assim por se
entusiasmarem mais com a «tabela de marcha» do que com a própria marcha;
outros ainda caem na acédia, por não saberem esperar e quererem dominar
o ritmo da vida. A ânsia hodierna de chegar a resultados imediatos faz
com que os agentes pastorais não tolerem facilmente o que signifique
alguma contradição, um aparente fracasso, uma crítica, uma cruz.
83. Assim se gera a maior ameaça, que «é o pragmatismo cinzento da
vida quotidiana da Igreja, no qual aparentemente tudo procede dentro da
normalidade, mas na realidade a fé vai-se deteriorando e degenerando na
mesquinhez».[63]
Desenvolve-se a psicologia do túmulo, que pouco a pouco transforma os
cristãos em múmias de museu. Desiludidos com a realidade, com a Igreja
ou consigo mesmos, vivem constantemente tentados a apegar-se a uma
tristeza melosa, sem esperança, que se apodera do coração como «o mais
precioso elixir do demónio».[64]
Chamados para iluminar e comunicar vida, acabam por se deixar cativar
por coisas que só geram escuridão e cansaço interior e corroem o
dinamismo apostólico. Por tudo isto, permiti que insista: Não deixemos
que nos roubem a alegria da evangelização!
84. A alegria do Evangelho é tal que nada e ninguém no-la poderá tirar (cf. Jo
16, 22). Os males do nosso mundo – e os da Igreja – não deveriam servir
como desculpa para reduzir a nossa entrega e o nosso ardor. Vejamo-los
como desafios para crescer. Além disso, o olhar crente é capaz de
reconhecer a luz que o Espírito Santo sempre irradia no meio da
escuridão, sem esquecer que, «onde abundou o pecado, superabundou a
graça» (Rm 5, 20). A nossa fé é desafiada a entrever o vinho em
que a água pode ser transformada, e a descobrir o trigo que cresce no
meio do joio. Cinquenta anos depois do Concílio Vaticano II, apesar de
nos entristecerem as misérias do nosso tempo e estarmos longe de
optimismos ingénuos, um maior realismo não deve significar menor
confiança no Espírito nem menor generosidade. Neste sentido, podemos
voltar a ouvir as palavras pronunciadas pelo Beato João XXIII naquele memorável 11 de Outubro de 1962:
«Chegam-nos aos ouvidos insinuações de almas, ardorosas sem dúvida no
zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e moderação. Nos
tempos actuais, não vêem senão prevaricações e ruínas. [...] Mas a nós
parece-nos que devemos discordar desses profetas de desgraças, que
anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o
fim do mundo. Na ordem presente das coisas, a misericordiosa Providência
está-nos levantando para uma ordem de relações humanas que, por obra
dos homens e a maior parte das vezes para além do que eles esperam, se
encaminham para o cumprimento dos seus desígnios superiores e
inesperados, e tudo, mesmo as adversidades humanas, converge para o bem
da Igreja».[65]
85. Uma das tentações mais sérias que sufoca o fervor e a ousadia é
a sensação de derrota que nos transforma em pessimistas lamurientos e
desencantados com cara de vinagre. Ninguém pode empreender uma luta, se
de antemão não está plenamente confiado no triunfo. Quem começa sem
confiança, perdeu de antemão metade da batalha e enterra os seus
talentos. Embora com a dolorosa consciência das próprias fraquezas, há
que seguir em frente, sem se dar por vencido, e recordar o que disse o
Senhor a São Paulo: «Basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se
na fraqueza» (2 Cor 12, 9). O triunfo cristão é sempre uma cruz,
mas cruz que é, simultaneamente, estandarte de vitória, que se empunha
com ternura batalhadora contra as investidas do mal. O mau espírito da
derrota é irmão da tentação de separar prematuramente o trigo do joio,
resultado de uma desconfiança ansiosa e egocêntrica.
86. É verdade que, nalguns lugares, se produziu uma
«desertificação» espiritual, fruto do projecto de sociedades que querem
construir sem Deus ou que destroem as suas raízes cristãs. Lá, «o mundo
cristão está a tornar-se estéril e se esgota como uma terra
excessivamente desfrutada que se transforma em poeira».[66]
Noutros países, a resistência violenta ao cristianismo obriga os
cristãos a viverem a sua fé às escondidas no país que amam. Esta é outra
forma muito triste de deserto. E a própria família ou o lugar de
trabalho podem ser também o tal ambiente árido, onde há que conservar a
fé e procurar irradiá-la. Mas «é precisamente a partir da experiência
deste deserto, deste vazio, que podemos redescobrir a alegria de crer, a
sua importância vital para nós, homens e mulheres. No deserto, é
possível redescobrir o valor daquilo que é essencial para a vida; assim
sendo, no mundo de hoje, há inúmeros sinais da sede de Deus, do sentido
último da vida, ainda que muitas vezes expressos implícita ou
negativamente. E, no deserto, existe sobretudo a necessidade de pessoas
de fé que, com suas próprias vidas, indiquem o caminho para a Terra
Prometida, mantendo assim viva a esperança».[67]
Em todo o caso, lá somos chamados a ser pessoas-cântaro para dar de
beber aos outros. Às vezes o cântaro transforma-se numa pesada cruz, mas
foi precisamente na Cruz que o Senhor, trespassado, Se nos entregou
como fonte de água viva. Não deixemos que nos roubem a esperança!
87. Neste tempo em que as redes e demais instrumentos da
comunicação humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o desafio
de descobrir e transmitir a «mística» de viver juntos, misturar-nos,
encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco
caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de
fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim,
as maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas
oportunidades de encontro e solidariedade entre todos. Como seria bom,
salutar, libertador, esperançoso, se pudéssemos trilhar este caminho!
Sair de si mesmo para se unir aos outros faz bem. Fechar-se em si mesmo é
provar o veneno amargo da imanência, e a humanidade perderá com cada
opção egoísta que fizermos.
88. O ideal cristão convidará sempre a superar a suspeita, a
desconfiança permanente, o medo de sermos invadidos, as atitudes
defensivas que nos impõe o mundo actual. Muitos tentam escapar dos
outros fechando-se na sua privacidade confortável ou no círculo reduzido
dos mais íntimos, e renunciam ao realismo da dimensão social do
Evangelho. Porque, assim como alguns quiseram um Cristo puramente
espiritual, sem carne nem cruz, também se pretendem relações
interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos, por ecrãs e
sistemas que se podem acender e apagar à vontade. Entretanto o Evangelho
convida-nos sempre a abraçar o risco do encontro com o rosto do outro,
com a sua presença física que interpela, com o seu sofrimentos e suas
reivindicações, com a sua alegria contagiosa permanecendo lado a lado. A
verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é inseparável do dom de si
mesmo, da pertença à comunidade, do serviço, da reconciliação com a
carne dos outros. Na sua encarnação, o Filho de Deus convidou-nos à
revolução da ternura.
89. O isolamento, que é uma concretização do imanentismo, pode
exprimir-se numa falsa autonomia que exclui Deus, mas pode também
encontrar na religião uma forma de consumismo espiritual à medida do
próprio individualismo doentio. O regresso ao sagrado e a busca
espiritual, que caracterizam a nossa época, são fenómenos ambíguos. Mais
do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder
adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de
ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e
sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma
espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo
tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária,
acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a
Deus.
90. As formas próprias da religiosidade popular são encarnadas,
porque brotaram da encarnação da fé cristã numa cultura popular. Por
isso mesmo, incluem uma relação pessoal, não com energias
harmonizadoras, mas com Deus, Jesus Cristo, Maria, um Santo. Têm carne,
têm rostos. Estão aptas para alimentar potencialidades relacionais e não
tanto fugas individualistas. Noutros sectores da nossa sociedade,
cresce o apreço por várias formas de «espiritualidade do bem-estar» sem
comunidade, por uma «teologia da prosperidade» sem compromissos
fraternos ou por experiências subjectivas sem rostos, que se reduzem a
uma busca interior imanentista.
91. Um desafio importante é mostrar que a solução nunca consistirá
em escapar de uma relação pessoal e comprometida com Deus, que ao mesmo
tempo nos comprometa com os outros. Isto é o que se verifica hoje
quando os crentes procuram esconder-se e livrar-se dos outros, e quando
subtilmente escapam de um lugar para outro ou de uma tarefa para outra,
sem criar vínculos profundos e estáveis: «A imaginação e mudança de
lugares enganou a muitos».[68]
É um remédio falso que faz adoecer o coração e, às vezes, o corpo. Faz
falta ajudar a reconhecer que o único caminho é aprender a encontrar os
demais com a atitude adequada, que é valorizá-los e aceitá-los como
companheiros de estrada, sem resistências interiores. Melhor ainda,
trata-se de aprender a descobrir Jesus no rosto dos outros, na sua voz,
nas suas reivindicações; e aprender também a sofrer, num abraço com
Jesus crucificado, quando recebemos agressões injustas ou ingratidões,
sem nos cansarmos jamais de optar pela fraternidade.[69]
92. Nisto está a verdadeira cura: de facto, o modo de nos
relacionarmos com os outros que, em vez de nos adoecer, nos cura é uma
fraternidade mística, contemplativa, que sabe ver a grandeza
sagrada do próximo, que sabe descobrir Deus em cada ser humano, que sabe
tolerar as moléstias da convivência agarrando-se ao amor de Deus, que
sabe abrir o coração ao amor divino para procurar a felicidade dos
outros como a procura o seu Pai bom. Precisamente nesta época, inclusive
onde são um «pequenino rebanho» (Lc 12, 32), os discípulos do Senhor são chamados a viver como comunidade que seja sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5, 13-16). São chamados a testemunhar, de forma sempre nova, uma pertença evangelizadora.[70] Não deixemos que nos roubem a comunidade!
93. O mundanismo espiritual, que se esconde por detrás de
aparências de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja, é buscar, em
vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal. É aquilo
que o Senhor censurava aos fariseus: «Como vos é possível acreditar, se
andais à procura da glória uns dos outros, e não procurais a glória que
vem do Deus único?» (Jo 5, 44). É uma maneira subtil de procurar «os próprios interesses, não os interesses de Jesus Cristo» (Fl
2, 21). Reveste-se de muitas formas, de acordo com o tipo de pessoas e
situações em que penetra. Por cultivar o cuidado da aparência, nem
sempre suscita pecados de domínio público, pelo que externamente tudo
parece correcto. Mas, se invadisse a Igreja, «seria infinitamente mais
desastroso do que qualquer outro mundanismo meramente moral».[71]
94. Este mundanismo pode alimentar-se sobretudo de duas maneiras
profundamente relacionadas. Uma delas é o fascínio do gnosticismo, uma
fé fechada no subjectivismo, onde apenas interessa uma determinada
experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente
confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica
enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos. A
outra maneira é o neopelagianismo auto-referencial e prometeuco de
quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças e se sente superior
aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente
fiel a um certo estilo católico próprio do passado. É uma suposta
segurança doutrinal ou disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista
e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam
os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as
energias a controlar. Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem os outros
interessam verdadeiramente. São manifestações dum imanentismo
antropocêntrico. Não é possível imaginar que, destas formas desvirtuadas
do cristianismo, possa brotar um autêntico dinamismo evangelizador.
95. Este obscuro mundanismo manifesta-se em muitas atitudes,
aparentemente opostas mas com a mesma pretensão de «dominar o espaço da
Igreja». Nalguns, há um cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e
do prestígio da Igreja, mas não se preocupam que o Evangelho adquira
uma real inserção no povo fiel de Deus e nas necessidades concretas da
história. Assim, a vida da Igreja transforma-se numa peça de museu ou
numa possessão de poucos. Noutros, o próprio mundanismo espiritual
esconde-se por detrás do fascínio de poder mostrar conquistas sociais e
políticas, ou numa vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, ou
numa atracção pelas dinâmicas de auto-estima e de realização
autoreferencial. Também se pode traduzir em várias formas de se
apresentar a si mesmo envolvido numa densa vida social cheia de viagens,
reuniões, jantares, recepções. Ou então desdobra-se num funcionalismo
empresarial, carregado de estatísticas, planificações e avaliações, onde
o principal beneficiário não é o povo de Deus mas a Igreja como
organização. Em qualquer um dos casos, não traz o selo de Cristo
encarnado, crucificado e ressuscitado, encerra-se em grupos de elite,
não sai realmente à procura dos que andam perdidos nem das imensas
multidões sedentas de Cristo. Já não há ardor evangélico, mas o gozo
espúrio duma autocomplacência egocêntrica.
96. Neste contexto, alimenta-se a vanglória de quantos se
contentam com ter algum poder e preferem ser generais de exércitos
derrotados antes que simples soldados dum batalhão que continua a lutar.
Quantas vezes sonhamos planos apostólicos expansionistas, meticulosos e
bem traçados, típicos de generais derrotados! Assim negamos a nossa
história de Igreja, que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de
esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no
trabalho fadigoso, porque todo o trabalho é «suor do nosso rosto». Em
vez disso, entretemo-nos vaidosos a falar sobre «o que se deveria fazer»
– o pecado do «deveriaqueísmo» – como mestres espirituais e peritos de
pastoral que dão instruções ficando de fora. Cultivamos a nossa
imaginação sem limites e perdemos o contacto com a dolorosa realidade do
nosso povo fiel.
97. Quem caiu neste mundanismo olha de cima e de longe, rejeita a
profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona, faz ressaltar
constantemente os erros alheios e vive obcecado pela aparência.
Circunscreveu os pontos de referência do coração ao horizonte fechado da
sua imanência e dos seus interesses e, consequentemente, não aprende
com os seus pecados nem está verdadeiramente aberto ao perdão. É uma
tremenda corrupção, com aparências de bem. Devemos evitá-lo, pondo a
Igreja em movimento de saída de si mesma, de missão centrada em Jesus
Cristo, de entrega aos pobres. Deus nos livre de uma Igreja mundana sob
vestes espirituais ou pastorais! Este mundanismo asfixiante cura-se
saboreando o ar puro do Espírito Santo, que nos liberta de estarmos
centrados em nós mesmos, escondidos numa aparência religiosa vazia de
Deus. Não deixemos que nos roubem o Evangelho!
98. Dentro do povo de Deus e nas diferentes comunidades, quantas
guerras! No bairro, no local de trabalho, quantas guerras por invejas e
ciúmes, mesmo entre cristãos! O mundanismo espiritual leva alguns
cristãos a estar em guerra com outros cristãos que se interpõem na sua
busca pelo poder, prestígio, prazer ou segurança económica. Além disso,
alguns deixam de viver uma adesão cordial à Igreja por alimentar um
espírito de contenda. Mais do que pertencer à Igreja inteira, com a sua
rica diversidade, pertencem a este ou àquele grupo que se sente
diferente ou especial.
99. O mundo está dilacerado pelas guerras e a violência, ou ferido
por um generalizado individualismo que divide os seres humanos e
põe-nos uns contra os outros visando o próprio bem-estar. Em vários
países, ressurgem conflitos e antigas divisões que se pensavam em parte
superados. Aos cristãos de todas as comunidades do mundo, quero
pedir-lhes de modo especial um testemunho de comunhão fraterna, que se
torne fascinante e resplandecente. Que todos possam admirar como vos
preocupais uns pelos outros, como mutuamente vos encorajais, animais e
ajudais: «Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se
vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 35). Foi o que Jesus, com uma intensa oração, pediu ao Pai: «Que todos sejam um só (…) em nós [para que] o mundo creia» (Jo
17, 21). Cuidado com a tentação da inveja! Estamos no mesmo barco e
vamos para o mesmo porto! Peçamos a graça de nos alegrarmos com os
frutos alheios, que são de todos.
100. Para quantos estão feridos por antigas divisões, resulta
difícil aceitar que os exortemos ao perdão e à reconciliação, porque
pensam que ignoramos a sua dor ou pretendemos fazer-lhes perder a
memória e os ideais. Mas, se virem o testemunho de comunidades
autenticamente fraternas e reconciliadas, isso é sempre uma luz que
atrai. Por isso me dói muito comprovar como nalgumas comunidades
cristãs, e mesmo entre pessoas consagradas, se dá espaço a várias formas
de ódio, divisão, calúnia, difamação, vingança, ciúme, a desejos de
impor as próprias ideias a todo o custo, e até perseguições que parecem
uma implacável caça às bruxas. Quem queremos evangelizar com estes
comportamentos?
101. Peçamos ao Senhor que nos faça compreender a lei do amor. Que
bom é termos esta lei! Como nos faz bem, apesar de tudo amar-nos uns
aos outros! Sim, apesar de tudo! A cada um de nós é dirigida a exortação
de Paulo: «Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem» (Rm 12, 21). E ainda: «Não nos cansemos de fazer o bem» (Gal
6, 9). Todos nós provamos simpatias e antipatias, e talvez neste
momento estejamos chateados com alguém. Pelo menos digamos ao Senhor:
«Senhor, estou chateado com este, com aquela. Peço-Vos por ele e por
ela». Rezar pela pessoa com quem estamos irritados é um belo passo rumo
ao amor, e é um acto de evangelização. Façamo-lo hoje mesmo. Não
deixemos que nos roubem o ideal do amor fraterno!
102. A imensa maioria do povo de Deus é constituída por leigos. Ao
seu serviço, está uma minoria: os ministros ordenados. Cresceu a
consciência da identidade e da missão dos leigos na Igreja. Embora não
suficiente, pode-se contar com um numeroso laicado, dotado de um
arreigado sentido de comunidade e uma grande fidelidade ao compromisso
da caridade, da catequese, da celebração da fé. Mas, a tomada de
consciência desta responsabilidade laical que nasce do Baptismo e da
Confirmação não se manifesta de igual modo em toda a parte; nalguns
casos, porque não se formaram para assumir responsabilidades
importantes, noutros por não encontrar espaço nas suas Igrejas
particulares para poderem exprimir-se e agir por causa dum excessivo
clericalismo que os mantém à margem das decisões. Apesar de se notar uma
maior participação de muitos nos ministérios laicais, este compromisso
não se reflecte na penetração dos valores cristãos no mundo social,
político e económico; limita-se muitas vezes às tarefas no seio da
Igreja, sem um empenhamento real pela aplicação do Evangelho na
transformação da sociedade. A formação dos leigos e a evangelização das
categorias profissionais e intelectuais constituem um importante desafio
pastoral.
103. A Igreja reconhece a indispensável contribuição da mulher na
sociedade, com uma sensibilidade, uma intuição e certas capacidades
peculiares, que habitualmente são mais próprias das mulheres que dos
homens. Por exemplo, a especial solicitude feminina pelos outros, que se
exprime de modo particular, mas não exclusivamente, na maternidade.
Vejo, com prazer, como muitas mulheres partilham responsabilidades
pastorais juntamente com os sacerdotes, contribuem para o acompanhamento
de pessoas, famílias ou grupos e prestam novas contribuições para a
reflexão teológica. Mas ainda é preciso ampliar os espaços para uma
presença feminina mais incisiva na Igreja. Porque «o génio feminino é
necessário em todas as expressões da vida social; por isso deve ser
garantida a presença das mulheres também no âmbito do trabalho»[72] e nos vários lugares onde se tomam as decisões importantes, tanto na Igreja como nas estruturas sociais.
104. As reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a
partir da firme convicção de que homens e mulheres têm a mesma
dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não se
podem iludir superficialmente. O sacerdócio reservado aos homens, como
sinal de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que
não se põe em discussão, mas pode tornar-se particularmente controversa
se se identifica demasiado a potestade sacramental com o poder. Não se
esqueça que, quando falamos da potestade sacerdotal, «estamos na esfera
da função e não na da dignidade e da santidade».[73]
O sacerdócio ministerial é um dos meios que Jesus utiliza ao serviço do
seu povo, mas a grande dignidade vem do Baptismo, que é acessível a
todos. A configuração do sacerdote com Cristo Cabeça – isto é, como
fonte principal da graça – não comporta uma exaltação que o coloque por
cima dos demais. Na Igreja, as funções «não dão justificação à superioridade de uns sobre os outros».[74]
Com efeito, uma mulher, Maria, é mais importante do que os Bispos.
Mesmo quando a função do sacerdócio ministerial é considerada
«hierárquica», há que ter bem presente que «se ordena integralmente à santidade dos membros do corpo místico de Cristo».[75]
A sua pedra de fecho e o seu fulcro não são o poder entendido como
domínio, mas a potestade de administrar o sacramento da Eucaristia;
daqui deriva a sua autoridade, que é sempre um serviço ao povo. Aqui
está um grande desafio para os Pastores e para os teólogos, que poderiam
ajudar a reconhecer melhor o que isto implica no que se refere ao
possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes, nos
diferentes âmbitos da Igreja.
105. A pastoral juvenil, tal como estávamos habituados a
desenvolvê-la, sofreu o impacto das mudanças sociais. Nas estruturas
ordinárias, os jovens habitualmente não encontram respostas para as suas
preocupações, necessidades, problemas e feridas. A nós, adultos,
custa-nos a ouvi-los com paciência, compreender as suas preocupações ou
as suas reivindicações, e aprender a falar-lhes na linguagem que eles
entendem. Pela mesma razão, as propostas educacionais não produzem os
frutos esperados. A proliferação e o crescimento de associações e
movimentos predominantemente juvenis podem ser interpretados como uma
acção do Espírito que abre caminhos novos em sintonia com as suas
expectativas e a busca de espiritualidade profunda e dum sentido mais
concreto de pertença. Todavia é necessário tornar mais estável a
participação destas agregações no âmbito da pastoral de conjunto da
Igreja.[76]
106. Embora nem sempre seja fácil abordar os jovens, houve
crescimento em dois aspectos: a consciência de que toda a comunidade os
evangeliza e educa, e a urgência de que eles tenham um protagonismo
maior. Deve-se reconhecer que, no actual contexto de crise do
compromisso e dos laços comunitários, são muitos os jovens que se
solidarizam contra os males do mundo, aderindo a várias formas de
militância e voluntariado. Alguns participam na vida da Igreja, integram
grupos de serviço e diferentes iniciativas missionárias nas suas
próprias dioceses ou noutros lugares. Como é bom que os jovens sejam
«caminheiros da fé», felizes por levarem Jesus Cristo a cada esquina, a
cada praça, a cada canto da terra!
107. Em muitos lugares, há escassez de vocações ao sacerdócio e à
vida consagrada. Frequentemente isso fica-se a dever à falta de ardor
apostólico contagioso nas comunidades, pelo que estas não entusiasmam
nem fascinam. Onde há vida, fervor, paixão de levar Cristo aos outros,
surgem vocações genuínas. Mesmo em paróquias onde os sacerdotes não são
muito disponíveis nem alegres, é a vida fraterna e fervorosa da
comunidade que desperta o desejo de se consagrar inteiramente a Deus e à
evangelização, especialmente se essa comunidade vivente reza
insistentemente pelas vocações e tem a coragem de propor aos seus jovens
um caminho de especial consagração. Por outro lado, apesar da escassez
vocacional, hoje temos noção mais clara da necessidade de uma melhor
selecção dos candidatos ao sacerdócio. Não se podem encher os seminários
com qualquer tipo de motivações, e menos ainda se estas estão
relacionadas com insegurança afectiva, busca de formas de poder, glória
humana ou bem-estar económico.
108. Como já disse, não pretendi oferecer um diagnóstico completo,
mas convido as comunidades a completarem e a enriquecerem estas
perspectivas a partir da consciência dos desafios próprios e das
comunidades vizinhas. Espero que, ao fazê-lo, tenham em conta que, todas
as vezes que intentamos ler os sinais dos tempos na realidade actual, é
conveniente ouvir os jovens e os idosos. Tanto uns como outros são a
esperança dos povos. Os idosos fornecem a memória e a sabedoria da
experiência, que convida a não repetir tontamente os mesmos erros do
passado. Os jovens chamam-nos a despertar e a aumentar a esperança,
porque trazem consigo as novas tendências da humanidade e abrem-nos ao
futuro, de modo que não fiquemos encalhados na nostalgia de estruturas e
costumes que já não são fonte de vida no mundo actual.
109. Os desafios existem para ser superados. Sejamos realistas,
mas sem perder a alegria, a audácia e a dedicação cheia de esperança.
Não deixemos que nos roubem a força missionária!
110. Depois de considerar alguns desafios da realidade actual,
quero agora recordar o dever que incumbe sobre nós em toda e qualquer
época e lugar, porque «não pode haver verdadeira evangelização sem o anúncio explícito de Jesus como Senhor» e sem existir uma «primazia do anúncio de Jesus Cristo em qualquer trabalho de evangelização».[77]
Recolhendo as preocupações dos Bispos asiáticos, João Paulo II afirmou
que, se a Igreja «deve realizar o seu destino providencial, então uma
evangelização entendida como o jubiloso, paciente e progressivo anúncio
da Morte salvífica e Ressurreição de Jesus Cristo há-de ser a vossa
prioridade absoluta».[78] Isto é válido para todos.
111. A evangelização é dever da Igreja. Este sujeito da
evangelização, porém, é mais do que uma instituição orgânica e
hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina para Deus. Trata-se
certamente de um mistério que mergulha as raízes na Trindade,
mas tem a sua concretização histórica num povo peregrino e
evangelizador, que sempre transcende toda a necessária expressão
institucional. Proponho que nos detenhamos um pouco nesta forma de
compreender a Igreja, que tem o seu fundamento último na iniciativa
livre e gratuita de Deus.
112. A salvação, que Deus nos oferece, é obra da sua misericórdia.
Não há acção humana, por melhor que seja, que nos faça merecer tão
grande dom. Por pura graça, Deus atrai-nos para nos unir a Si.[79]
Envia o seu Espírito aos nossos corações, para nos fazer seus filhos,
para nos transformar e tornar capazes de responder com a nossa vida ao
seu amor. A Igreja é enviada por Jesus Cristo como sacramento da
salvação oferecida por Deus.[80]
Através da sua acção evangelizadora, ela colabora como instrumento da
graça divina, que opera incessantemente para além de toda e qualquer
possível supervisão. Bem o exprimiu Bento XVI,
ao abrir as reflexões do Sínodo: «É sempre importante saber que a
primeira palavra, a iniciativa verdadeira, a actividade verdadeira vem
de Deus e só inserindo-nos nesta iniciativa divina, só implorando esta
iniciativa divina, nos podemos tornar também – com Ele e n’Ele –
evangelizadores».[81] O princípio da primazia da graça deve ser um farol que ilumine constantemente as nossas reflexões sobre a evangelização.
113. Esta salvação, que Deus realiza e a Igreja jubilosamente anuncia, é para todos,[82]
e Deus criou um caminho para Se unir a cada um dos seres humanos de
todos os tempos. Escolheu convocá-los como povo, e não como seres
isolados.[83]
Ninguém se salva sozinho, isto é, nem como indivíduo isolado, nem por
suas próprias forças. Deus atrai-nos, no respeito da complexa trama de
relações interpessoais que a vida numa comunidade humana supõe. Este
povo, que Deus escolheu para Si e convocou, é a Igreja. Jesus não diz
aos Apóstolos para formarem um grupo exclusivo, um grupo de elite. Jesus
diz: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos» (Mt 28,
19). São Paulo afirma que no povo de Deus, na Igreja, «não há judeu nem
grego (...), porque todos sois um só em Cristo Jesus» (Gal 3,
28). Eu gostaria de dizer àqueles que se sentem longe de Deus e da
Igreja, aos que têm medo ou aos indiferentes: o Senhor também te chama
para seres parte do seu povo, e fá-lo com grande respeito e amor!
114. Ser Igreja significa ser povo de Deus, de acordo com o grande
projecto de amor do Pai. Isto implica ser o fermento de Deus no meio da
humanidade; quer dizer anunciar e levar a salvação de Deus a este nosso
mundo, que muitas vezes se sente perdido, necessitado de ter respostas
que encorajem, dêem esperança e novo vigor para o caminho. A Igreja deve
ser o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se
acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do
Evangelho.
115. Este povo de Deus encarna-se nos povos da Terra, cada um dos
quais tem a sua cultura própria. A noção de cultura é um instrumento
precioso para compreender as diversas expressões da vida cristã que
existem no povo de Deus. Trata-se do estilo de vida que uma determinada
sociedade possui, da forma peculiar que têm os seus membros de se
relacionar entre si, com as outras criaturas e com Deus. Assim
entendida, a cultura abrange a totalidade da vida dum povo.[84] Cada povo, na sua evolução histórica, desenvolve a própria cultura com legítima autonomia.[85] Isso fica-se a dever ao facto de que a pessoa humana, «por sua natureza, necessita absolutamente da vida social»[86]
e mantém contínua referência à sociedade, na qual vive uma maneira
concreta de se relacionar com a realidade. O ser humano está sempre
culturalmente situado: «natureza e cultura encontram-se intimamente
ligadas».[87] A graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe.
116. Ao longo destes dois milénios de cristianismo, uma quantidade
inumerável de povos recebeu a graça da fé, fê-la florir na sua vida
diária e transmitiu-a segundo as próprias modalidades culturais. Quando
uma comunidade acolhe o anúncio da salvação, o Espírito Santo fecunda a
sua cultura com a força transformadora do Evangelho. E assim, como
podemos ver na história da Igreja, o cristianismo não dispõe de um único
modelo cultural, mas «permanecendo o que é, na fidelidade total ao
anúncio evangélico e à tradição da Igreja, o cristianismo assumirá
também o rosto das diversas culturas e dos vários povos onde for
acolhido e se radicar».[88]
Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria
cultura, a Igreja exprime a sua genuína catolicidade e mostra «a beleza
deste rosto pluriforme».[89]
Através das manifestações cristãs dum povo evangelizado, o Espírito
Santo embeleza a Igreja, mostrando-lhe novos aspectos da Revelação e
presenteando-a com um novo rosto. Pela inculturação, a Igreja «introduz
os povos com as suas culturas na sua própria comunidade»,[90]
porque «cada cultura oferece formas e valores positivos que podem
enriquecer o modo como o Evangelho é pregado, compreendido e vivido».[91] Assim, «a Igreja, assumindo os valores das diversas culturas, torna-se sponsa ornata monilibus suis, a noiva que se adorna com suas jóias (cf. Is 61, 10)».[92]
117. Se for bem entendida, a diversidade cultural não ameaça a
unidade da Igreja. É o Espírito Santo, enviado pelo Pai e o Filho, que
transforma os nossos corações e nos torna capazes de entrar na comunhão
perfeita da Santíssima Trindade, onde tudo encontra a sua unidade. O
Espírito Santo constrói a comunhão e a harmonia do povo de Deus. Ele
mesmo é a harmonia, tal como é o vínculo de amor entre o Pai e o Filho.[93]
É Ele que suscita uma abundante e diversificada riqueza de dons e, ao
mesmo tempo, constrói uma unidade que nunca é uniformidade, mas
multiforme harmonia que atrai. A evangelização reconhece com alegria
estas múltiplas riquezas que o Espírito gera na Igreja. Não faria
justiça à lógica da encarnação pensar num cristianismo monocultural e
monocórdico. É verdade que algumas culturas estiveram intimamente
ligadas à pregação do Evangelho e ao desenvolvimento do pensamento
cristão, mas a mensagem revelada não se identifica com nenhuma delas e
possui um conteúdo transcultural. Por isso, na evangelização de novas
culturas ou de culturas que não acolheram a pregação cristã, não é
indispensável impor uma determinada forma cultural, por mais bela e
antiga que seja, juntamente com a proposta do Evangelho. A mensagem, que
anunciamos, sempre apresenta alguma roupagem cultural, mas às vezes, na
Igreja, caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode
mostrar mais fanatismo do que autêntico ardor evangelizador.
118. Os Bispos da Oceânia pediram que a Igreja neste continente
«desenvolva uma compreensão e exposição da verdade de Cristo partindo
das tradições e culturas locais», e instaram todos os missionários «a
trabalhar de harmonia com os cristãos indígenas para garantir que a
doutrina e a vida da Igreja sejam expressas em formas legítimas e
apropriadas a cada cultura».[94]
Não podemos pretender que todos os povos dos vários continentes, ao
exprimir a fé cristã, imitem as modalidades adoptadas pelos povos
europeus num determinado momento da história, porque a fé não se pode
confinar dentro dos limites de compreensão e expressão duma cultura.[95] É indiscutível que uma única cultura não esgota o mistério da redenção de Cristo.
119. Em todos os baptizados, desde o primeiro ao último, actua a
força santificadora do Espírito que impele a evangelizar. O povo de Deus
é santo em virtude desta unção, que o torna infalível «in credendo»,
ou seja, ao crer, não pode enganar-se, ainda que não encontre palavras
para explicar a sua fé. O Espírito guia-o na verdade e condu-lo à
salvação.[96] Como parte do seu mistério de amor pela humanidade, Deus dota a totalidade dos fiéis com um instinto da fé – o sensus fidei
– que os ajuda a discernir o que vem realmente de Deus. A presença do
Espírito confere aos cristãos uma certa conaturalidade com as realidades
divinas e uma sabedoria que lhes permite captá-las intuitivamente,
embora não possuam os meios adequados para expressá-las com precisão.
120. Em virtude do Baptismo recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se discípulo missionário (cf. Mt
28, 19). Cada um dos baptizados, independentemente da própria função na
Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito activo de
evangelização, e seria inapropriado pensar num esquema de evangelização
realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo fiel seria
apenas receptor das suas acções. A nova evangelização deve implicar um
novo protagonismo de cada um dos baptizados. Esta convicção
transforma-se num apelo dirigido a cada cristão para que ninguém
renuncie ao seu compromisso de evangelização, porque, se uma pessoa
experimentou verdadeiramente o amor de Deus que o salva, não precisa de
muito tempo de preparação para sair a anunciá-lo, não pode esperar que
lhe dêem muitas lições ou longas instruções. Cada cristão é missionário
na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus; não
digamos mais que somos «discípulos» e «missionários», mas sempre que
somos «discípulos missionários». Se não estivermos convencidos disto,
olhemos para os primeiros discípulos, que logo depois de terem conhecido
o olhar de Jesus, saíram proclamando cheios de alegria: «Encontrámos o
Messias» (Jo 1, 41). A Samaritana, logo que terminou o seu
diálogo com Jesus, tornou-se missionária, e muitos samaritanos
acreditaram em Jesus «devido às palavras da mulher» (Jo 4, 39).
Também São Paulo, depois do seu encontro com Jesus Cristo, «começou
imediatamente a proclamar (…) que Jesus era o Filho de Deus» (Act 9, 20). Porque esperamos nós?
121. Certamente todos somos chamados a crescer como
evangelizadores. Devemos procurar simultaneamente uma melhor formação,
um aprofundamento do nosso amor e um testemunho mais claro do Evangelho.
Neste sentido, todos devemos deixar que os outros nos evangelizem
constantemente; isto não significa que devemos renunciar à missão
evangelizadora, mas encontrar o modo de comunicar Jesus que corresponda à
situação em que vivemos. Seja como for, todos somos chamados a dar aos
outros o testemunho explícito do amor salvífico do Senhor, que, sem
olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a sua
Palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida. O teu coração sabe que a
vida não é a mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o
que te ajuda a viver e te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos
outros. A nossa imperfeição não deve ser desculpa; pelo contrário, a
missão é um estímulo constante para não nos acomodarmos na mediocridade,
mas continuarmos a crescer. O testemunho de fé, que todo o cristão é
chamado a oferecer, implica dizer como São Paulo: «Não que já o tenha
alcançado ou já seja perfeito; mas corro para ver se o alcanço, (…)
lançando-me para o que vem à frente» (Fl 3, 12-13).
122. Da mesma forma, podemos pensar que os diferentes povos, nos
quais foi inculturado o Evangelho, são sujeitos colectivos activos,
agentes da evangelização. Assim é, porque cada povo é o criador da sua
cultura e o protagonista da sua história. A cultura é algo de dinâmico,
que um povo recria constantemente, e cada geração transmite à seguinte
um conjunto de atitudes relativas às diversas situações existenciais,
que esta nova geração deve reelaborar face aos próprios desafios. O ser
humano «é simultaneamente filho e pai da cultura onde está inserido».[97]
Quando o Evangelho se inculturou num povo, no seu processo de
transmissão cultural também transmite a fé de maneira sempre nova; daí a
importância da evangelização entendida como inculturação. Cada porção
do povo de Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus segundo a sua índole
própria, dá testemunho da fé recebida e enriquece-a com novas expressões
que falam por si. Pode dizer-se que «o povo se evangeliza continuamente
a si mesmo».[98]
Aqui ganha importância a piedade popular, verdadeira expressão da
actividade missionária espontânea do povo de Deus. Trata-se de uma
realidade em permanente desenvolvimento, cujo protagonista é o Espírito
Santo.[99]
123. Na piedade popular, pode-se captar a modalidade em que a fé
recebida se encarnou numa cultura e continua a transmitir-se. Vista por
vezes com desconfiança, a piedade popular foi objecto de revalorização
nas décadas posteriores ao Concílio. Quem deu um impulso decisivo nesta
direcção, foi Paulo VI na sua Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi. Nela explica que a piedade popular «traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres e os simples podem experimentar»[100]
e «torna as pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e
predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de
manifestar a fé».[101] Já mais perto dos nossos dias, Bento XVI,
na América Latina, assinalou que se trata de um «precioso tesouro da
Igreja Católica» e que nela «aparece a alma dos povos
latino-americanos».[102]
124. No Documento de Aparecida, descrevem-se as riquezas
que o Espírito Santo explicita na piedade popular por sua iniciativa
gratuita. Naquele amado Continente, onde uma multidão imensa de cristãos
exprime a sua fé através da piedade popular, os Bispos chamam-na também
«espiritualidade popular» ou «mística popular».[103] Trata-se de uma verdadeira «espiritualidade encarnada na cultura dos simples».[104]
Não é vazia de conteúdos, mas descobre-os e exprime-os mais pela via
simbólica do que pelo uso da razão instrumental e, no acto de fé,
acentua mais o credere in Deum que o credere Deum.[105] É «uma maneira legítima de viver a fé, um modo de se sentir parte da Igreja e uma forma de ser missionários»;[106]
comporta a graça da missionariedade, do sair de si e do peregrinar: «O
caminhar juntos para os santuários e o participar em outras
manifestações da piedade popular, levando também os filhos ou convidando
a outras pessoas, é em si mesmo um gesto evangelizador».[107] Não coarctemos nem pretendamos controlar esta força missionária!
125. Para compreender esta necessidade, é preciso abordá-la com o
olhar do Bom Pastor, que não procura julgar mas amar. Só a partir da
conaturalidade afectiva que dá o amor é que podemos apreciar a vida
teologal presente na piedade dos povos cristãos, especialmente nos
pobres. Penso na fé firme das mães ao pé da cama do filho doente, que se
agarram a um terço ainda que não saibam elencar os artigos do Credo; ou
na carga imensa de esperança contida numa vela que se acende, numa casa
humilde, para pedir ajuda a Maria, ou nos olhares de profundo amor a
Cristo crucificado. Quem ama o povo fiel de Deus, não pode ver estas
acções unicamente como uma busca natural da divindade; são a
manifestação duma vida teologal animada pela acção do Espírito Santo,
que foi derramado em nossos corações (cf. Rm 5, 5).
126.Na piedade popular, por ser fruto do Evangelho inculturado,
subjaz uma força activamente evangelizadora que não podemos subestimar:
seria ignorar a obra do Espírito Santo. Ao contrário, somos chamados a
encorajá-la e fortalecê-la para aprofundar o processo de inculturação,
que é uma realidade nunca acabada. As expressões da piedade popular têm
muito que nos ensinar e, para quem as sabe ler, são um lugar teológico a que devemos prestar atenção particularmente na hora de pensar a nova evangelização.
127. Hoje que a Igreja deseja viver uma profunda renovação
missionária, há uma forma de pregação que nos compete a todos como
tarefa diária: é cada um levar o Evangelho às pessoas com quem se
encontra, tanto aos mais íntimos como aos desconhecidos. É a pregação
informal que se pode realizar durante uma conversa, e é também a que
realiza um missionário quando visita um lar. Ser discípulo significa ter
a disposição permanente de levar aos outros o amor de Jesus; e isto
sucede espontaneamente em qualquer lugar: na rua, na praça, no trabalho,
num caminho.
128. Nesta pregação, sempre respeitosa e amável, o primeiro
momento é um diálogo pessoal, no qual a outra pessoa se exprime e
partilha as suas alegrias, as suas esperanças, as preocupações com os
seus entes queridos e muitas coisas que enchem o coração. Só depois
desta conversa é que se pode apresentar-lhe a Palavra, seja pela leitura
de algum versículo ou de modo narrativo, mas sempre recordando o
anúncio fundamental: o amor pessoal de Deus que Se fez homem,
entregou-Se a Si mesmo por nós e, vivo, oferece a sua salvação e a sua
amizade. É o anúncio que se partilha com uma atitude humilde e
testemunhal de quem sempre sabe aprender, com a consciência de que esta
mensagem é tão rica e profunda que sempre nos ultrapassa. Umas vezes
exprime-se de maneira mais directa, outras através dum testemunho
pessoal, uma história, um gesto, ou outra forma que o próprio Espírito
Santo possa suscitar numa circunstância concreta. Se parecer prudente e
houver condições, é bom que este encontro fraterno e missionário conclua
com uma breve oração que se relacione com as preocupações que a pessoa
manifestou. Assim ela sentirá mais claramente que foi ouvida e
interpretada, que a sua situação foi posta nas mãos de Deus, e
reconhecerá que a Palavra de Deus fala realmente à sua própria vida.
129. Contudo não se deve pensar que o anúncio evangélico tenha de
ser transmitido sempre com determinadas fórmulas pré-estabelecidas ou
com palavras concretas que exprimam um conteúdo absolutamente
invariável. Transmite-se com formas tão diversas que seria impossível
descrevê-las ou catalogá-las, e cujo sujeito colectivo é o povo de Deus
com seus gestos e sinais inumeráveis. Por conseguinte, se o Evangelho se
encarnou numa cultura, já não se comunica apenas através do anúncio de
pessoa a pessoa. Isto deve fazer-nos pensar que, nos países onde o
cristianismo é minoria, para além de animar cada baptizado a anunciar o
Evangelho, as Igrejas particulares hão-de promover activamente formas,
pelo menos incipientes, de inculturação. Enfim, o que se deve procurar é
que a pregação do Evangelho, expressa com categorias próprias da
cultura onde é anunciado, provoque uma nova síntese com essa cultura.
Embora estes processos sejam sempre lentos, às vezes o medo paralisa-nos
demasiado. Se deixamos que as dúvidas e os medos sufoquem toda a
ousadia, é possível que, em vez de sermos criativos, nos deixemos
simplesmente ficar cómodos sem provocar qualquer avanço e, neste caso,
não seremos participantes dos processos históricos com a nossa
cooperação, mas simplesmente espectadores duma estagnação estéril da
Igreja.
130. O Espírito Santo enriquece toda a Igreja evangelizadora
também com diferentes carismas. São dons para renovar e edificar a
Igreja.[108]
Não se trata de um património fechado, entregue a um grupo para que o
guarde; mas são presentes do Espírito integrados no corpo eclesial,
atraídos para o centro que é Cristo, donde são canalizados num impulso
evangelizador. Um sinal claro da autenticidade dum carisma é a sua
eclesialidade, a sua capacidade de se integrar harmoniosamente na vida
do povo santo de Deus para o bem de todos. Uma verdadeira novidade
suscitada pelo Espírito não precisa de fazer sombra sobre outras
espiritualidades e dons para se afirmar a si mesma. Quanto mais um
carisma dirigir o seu olhar para o coração do Evangelho, tanto mais
eclesial será o seu exercício. É na comunhão, mesmo que seja fadigosa,
que um carisma se revela autêntica e misteriosamente fecundo. Se vive
este desafio, a Igreja pode ser um modelo para a paz no mundo.
131. As diferenças entre as pessoas e as comunidades por vezes são
incómodas, mas o Espírito Santo, que suscita esta diversidade, de tudo
pode tirar algo de bom e transformá-lo em dinamismo evangelizador que
actua por atracção. A diversidade deve ser sempre conciliada com a ajuda
do Espírito Santo; só Ele pode suscitar a diversidade, a pluralidade, a
multiplicidade e, ao mesmo tempo, realizar a unidade. Ao invés, quando
somos nós que pretendemos a diversidade e nos fechamos em nossos
particularismos, em nossos exclusivismos, provocamos a divisão; e, por
outro lado, quando somos nós que queremos construir a unidade com os
nossos planos humanos, acabamos por impor a uniformidade, a homologação.
Isto não ajuda a missão da Igreja.
132. O anúncio às culturas implica também um anúncio às culturas
profissionais, científicas e académicas. É o encontro entre a fé, a
razão e as ciências, que visa desenvolver um novo discurso sobre a
credibilidade, uma apologética original[109]
que ajude a criar as predisposições para que o Evangelho seja escutado
por todos. Quando algumas categorias da razão e das ciências são
acolhidas no anúncio da mensagem, tais categorias tornam-se instrumentos
de evangelização; é a água transformada em vinho. É aquilo que, uma vez
assumido, não só é redimido, mas torna-se instrumento do Espírito para
iluminar e renovar o mundo.
133.Uma vez que não basta a preocupação do evangelizador por
chegar a cada pessoa, mas o Evangelho também se anuncia às culturas no
seu conjunto, a teologia – e não só a teologia pastoral – em diálogo com
outras ciências e experiências humanas tem grande importância para
pensar como fazer chegar a proposta do Evangelho à variedade dos
contextos culturais e dos destinatários.[110]
A Igreja, comprometida na evangelização, aprecia e encoraja o carisma
dos teólogos e o seu esforço na investigação teológica, que promove o
diálogo com o mundo da cultura e da ciência. Faço apelo aos teólogos
para que cumpram este serviço como parte da missão salvífica da Igreja.
Mas, para isso, é necessário que tenham a peito a finalidade
evangelizadora da Igreja e da própria teologia, e não se contentem com
uma teologia de gabinete.
134.As universidades são um âmbito privilegiado para pensar e
desenvolver este compromisso de evangelização de modo interdisciplinar e
inclusivo. As escolas católicas, que sempre procuram conjugar a tarefa
educacional com o anúncio explícito do Evangelho, constituem uma
contribuição muito válida para a evangelização da cultura, mesmo em
países e cidades onde uma situação adversa nos incentiva a usar a nossa
criatividade para se encontrar os caminhos adequados.[111]
135. Consideremos agora a pregação dentro da Liturgia, que requer
uma séria avaliação por parte dos Pastores. Deter-me-ei particularmente,
e até com certa meticulosidade, na homilia e sua preparação, porque são
muitas as reclamações relacionadas com este ministério importante, e
não podemos fechar os ouvidos. A homilia é o ponto de comparação para
avaliar a proximidade e a capacidade de encontro de um Pastor com o seu
povo. De facto, sabemos que os fiéis lhe dão muita importância; e,
muitas vezes, tanto eles como os próprios ministros ordenados sofrem:
uns a ouvir e os outros a pregar. É triste que assim seja. A homilia
pode ser, realmente, uma experiência intensa e feliz do Espírito, um
consolador encontro com a Palavra, uma fonte constante de renovação e
crescimento.
136. Renovemos a nossa confiança na pregação, que se funda na
convicção de que é Deus que deseja alcançar os outros através do
pregador e de que Ele mostra o seu poder através da palavra humana. São
Paulo fala vigorosamente sobre a necessidade de pregar, porque o Senhor
quis chegar aos outros por meio também da nossa palavra (cf. Rm 10, 14-17). Com a palavra, Nosso Senhor conquistou o coração da gente. De todas as partes, vinham para O ouvir (cf. Mc 1, 45). Ficavam maravilhados, «bebendo» os seus ensinamentos (cf. Mc 6, 2). Sentiam que lhes falava como quem tem autoridade (cf. Mc 1, 27). E os Apóstolos, que Jesus estabelecera «para estarem com Ele e para os enviar a pregar» (Mc 3, 14), atraíram para o seio da Igreja todos os povos com a palavra (cf. Mc 16, 15.20).
137. Agora é oportuno recordar que «a proclamação litúrgica da
Palavra de Deus, principalmente no contexto da assembleia eucarística,
não é tanto um momento de meditação e de catequese, como sobretudo o
diálogo de Deus com o seu povo, no qual se proclamam as maravilhas da
salvação e se propõem continuamente as exigências da Aliança».[112]
Reveste-se de um valor especial a homilia, derivado do seu contexto
eucarístico, que supera toda a catequese por ser o momento mais alto do
diálogo entre Deus e o seu povo, antes da comunhão sacramental. A
homilia é um retomar este diálogo que já está estabelecido entre o
Senhor e o seu povo. Aquele que prega deve conhecer o coração da sua
comunidade para identificar onde está vivo e ardente o desejo de Deus e
também onde é que este diálogo de amor foi sufocado ou não pôde dar
fruto.
138. A homilia não pode ser um espectáculo de divertimento, não
corresponde à lógica dos recursos mediáticos, mas deve dar fervor e
significado à celebração. É um género peculiar, já que se trata de uma
pregação no quadro duma celebração litúrgica; por conseguinte,
deve ser breve e evitar que se pareça com uma conferência ou uma lição. O
pregador pode até ser capaz de manter vivo o interesse das pessoas por
uma hora, mas assim a sua palavra torna-se mais importante que a
celebração da fé. Se a homilia se prolonga demasiado, lesa duas
características da celebração litúrgica: a harmonia entre as suas partes
e o seu ritmo. Quando a pregação se realiza no contexto da Liturgia,
incorpora-se como parte da oferenda que se entrega ao Pai e como
mediação da graça que Cristo derrama na celebração. Este mesmo contexto
exige que a pregação oriente a assembleia, e também o pregador, para uma
comunhão com Cristo na Eucaristia, que transforme a vida. Isto requer
que a palavra do pregador não ocupe um lugar excessivo, para que o
Senhor brilhe mais que o ministro.
139. Dissemos que o povo de Deus, pela acção constante do Espírito
nele, se evangeliza continuamente a si mesmo. Que implicações tem esta
convicção para o pregador? Lembra-nos que a Igreja é mãe e prega ao povo
como uma mãe fala ao seu filho, sabendo que o filho tem confiança de
que tudo o que se lhe ensina é para seu bem, porque se sente amado. Além
disso, a boa mãe sabe reconhecer tudo o que Deus semeou no seu filho,
escuta as suas preocupações e aprende com ele. O espírito de amor que
reina numa família guia tanto a mãe como o filho nos seus diálogos, nos
quais se ensina e aprende, se corrige e valoriza o que é bom; assim deve
acontecer também na homilia. O Espírito que inspirou os Evangelhos e
actua no povo de Deus, inspira também como se deve escutar a fé do povo e
como se deve pregar em cada Eucaristia. Portanto a pregação cristã
encontra, no coração da cultura do povo, um manancial de água viva tanto
para saber o que se deve dizer como para encontrar o modo mais
apropriado para o dizer. Assim como todos gostamos que nos falem na
nossa língua materna, assim também, na fé, gostamos que nos falem em
termos da «cultura materna», em termos do idioma materno (cf. 2 Mac
7, 21.27), e o coração dispõe-se a ouvir melhor. Esta linguagem é uma
tonalidade que transmite coragem, inspiração, força, impulso.
140. Este âmbito materno-eclesial, onde se desenrola o diálogo do
Senhor com o seu povo, deve ser encarecido e cultivado através da
proximidade cordial do pregador, do tom caloroso da sua voz, da mansidão
do estilo das suas frases, da alegria dos seus gestos. Mesmo que às
vezes a homilia seja um pouco maçante, se houver este espírito
materno-eclesial, será sempre fecunda, tal como os conselhos maçantes
duma mãe, com o passar do tempo, dão fruto no coração dos filhos.
141. Ficamos admirados com os recursos empregues pelo Senhor para
dialogar com o seu povo, revelar o seu mistério a todos, cativar a gente
comum com ensinamentos tão elevados e exigentes. Creio que o segredo de
Jesus esteja escondido naquele seu olhar o povo mais além das suas
fraquezas e quedas: «Não temais, pequenino rebanho, porque aprouve ao
vosso Pai dar-vos o Reino» (Lc 12, 32); Jesus prega com este
espírito. Transbordando de alegria no Espírito, bendiz o Pai por Lhe
atrair os pequeninos: «Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra,
porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as
revelaste aos pequeninos» (Lc 10, 21). O Senhor compraz-Se
verdadeiramente em dialogar com o seu povo, e compete ao pregador fazer
sentir este gosto do Senhor ao seu povo.
142. Um diálogo é muito mais do que a comunicação duma verdade.
Realiza-se pelo prazer de falar e pelo bem concreto que se comunica
através das palavras entre aqueles que se amam. É um bem que não
consiste em coisas, mas nas próprias pessoas que mutuamente se dão no
diálogo. A pregação puramente moralista ou doutrinadora e também a que
se transforma numa lição de exegese reduzem esta comunicação entre os
corações que se verifica na homilia e que deve ter um carácter quase
sacramental: «A fé surge da pregação, e a pregação surge pela palavra de
Cristo» (Rm 10, 17). Na homilia, a verdade anda de mãos dadas
com a beleza e o bem. Não se trata de verdades abstractas ou de
silogismos frios, porque se comunica também a beleza das imagens que o
Senhor utilizava para incentivar a prática do bem. A memória do povo
fiel, como a de Maria, deve ficar transbordante das maravilhas de Deus. O
seu coração, esperançado na prática alegre e possível do amor que lhe
foi anunciado, sente que toda a palavra na Escritura, antes de ser
exigência, é dom.
143. O desafio duma pregação inculturada consiste em transmitir a
síntese da mensagem evangélica, e não ideias ou valores soltos. Onde
está a tua síntese, ali está o teu coração. A diferença entre fazer luz
com sínteses e o fazê-lo com ideias soltas é a mesma que há entre o
ardor do coração e o tédio. O pregador tem a belíssima e difícil missão
de unir os corações que se amam: o do Senhor e os do seu povo. O diálogo
entre Deus e o seu povo reforça ainda mais a aliança entre ambos e
estreita o vínculo da caridade. Durante o tempo da homilia, os corações
dos crentes fazem silêncio e deixam-No falar a Ele. O Senhor e o seu
povo falam-se de mil e uma maneiras directamente, sem intermediários,
mas, na homilia, querem que alguém sirva de instrumento e exprima os
sentimentos, de modo que, depois, cada um possa escolher como continuar a
sua conversa. A palavra é, essencialmente, mediadora e necessita não só
dos dois dialogantes mas também de um pregador que a represente como
tal, convencido de que «não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo
Jesus, o Senhor, e nos consideramos vossos servos, por amor de Jesus» (2 Cor 4, 5).
144. Falar com o coração implica mantê-lo não só ardente, mas
também iluminado pela integridade da Revelação e pelo caminho que essa
Palavra percorreu no coração da Igreja e do nosso povo fiel ao longo da
sua história. A identidade cristã, que é aquele abraço baptismal que o
Pai nos deu em pequeninos, faz-nos anelar, como fi-lhos pródigos – e
predilectos em Maria –, pelo outro abraço, o do Pai misericordioso que
nos espera na glória. Fazer com que o nosso povo se sinta, de certo
modo, no meio destes dois abraços é a tarefa difícil, mas bela, de quem
prega o Evangelho.
145. A preparação da pregação é uma tarefa tão importante que
convém dedicar-lhe um tempo longo de estudo, oração, reflexão e
criatividade pastoral. Com muita amizade, quero deter-me a propor um
itinerário de preparação da homilia. Trata-se de indicações que, para
alguns, poderão parecer óbvias, mas considero oportuno sugeri-las para
recordar a necessidade de dedicar um tempo privilegiado a este precioso
ministério. Alguns párocos sustentam frequentemente que isto não é
possível por causa de tantas incumbências que devem desempenhar; todavia
atrevo-me a pedir que todas as semanas se dedique a esta tarefa um
tempo pessoal e comunitário suficientemente longo, mesmo que se tenha de
dar menos tempo a outras tarefas também importantes. A confiança no
Espírito Santo que actua na pregação não é meramente passiva, mas activa
e criativa. Implica oferecer-se como instrumento (cf. Rm
12, 1), com todas as próprias capacidades, para que possam ser
utilizadas por Deus. Um pregador que não se prepara não é «espiritual»: é
desonesto e irresponsável quanto aos dons que recebeu.
146. O primeiro passo, depois de invocar o Espírito Santo, é
prestar toda a atenção ao texto bíblico, que deve ser o fundamento da
pregação. Quando alguém se detém procurando compreender qual é a
mensagem dum texto, exerce o «culto da verdade».[113]
É a humildade do coração que reconhece que a Palavra sempre nos
transcende, que somos, «não os árbitros nem os proprietários, mas os
depositários, os arautos e os servidores».[114]
Esta atitude de humilde e deslumbrada veneração da Palavra exprime-se
detendo-se a estudá-la com o máximo cuidado e com um santo temor de a
manipular. Para se poder interpretar um texto bíblico, faz falta
paciência, pôr de parte toda a ansiedade e atribuir-lhe tempo, interesse
e dedicação gratuita. Há que pôr de lado qualquer preocupação
que nos inquiete, para entrar noutro âmbito de serena atenção. Não vale a
pena dedicar-se a ler um texto bíblico, se aquilo que se quer obter são
resultados rápidos, fáceis ou imediatos. Por isso, a preparação da
pregação requer amor. Uma pessoa só dedica um tempo gratuito e sem
pressa às coisas ou às pessoas que ama; e aqui trata-se de amar a Deus,
que quis falar. A partir deste amor, uma pessoa pode deter-se
todo o tempo que for necessário, com a atitude dum discípulo: «Fala,
Senhor; o teu servo escuta» (1 Sam 3, 9).
147. Em primeiro lugar, convém estarmos seguros de compreender adequadamente o significado das palavras
que lemos. Quero insistir em algo que parece evidente, mas que nem
sempre é tido em conta: o texto bíblico, que estudamos, tem dois ou três
mil anos, a sua linguagem é muito diferente da que usamos agora. Por
mais que nos pareça termos entendido as palavras, que estão traduzidas
na nossa língua, isso não significa que compreendemos correctamente tudo
o que o escritor sagrado queria exprimir. São conhecidos os vários
recursos que proporciona a análise literária: prestar atenção às
palavras que se repetem ou evidenciam, reconhecer a estrutura e o
dinamismo próprio dum texto, considerar o lugar que ocupam os
personagens, etc. Mas o objectivo não é o de compreender todos os
pequenos detalhes dum texto; o mais importante é descobrir qual é a
mensagem principal, a mensagem que confere estrutura e unidade ao
texto. Se o pregador não faz este esforço, é possível que também a sua
pregação não tenha unidade nem ordem; o seu discurso será apenas uma
súmula de várias ideias desarticuladas que não conseguirão mobilizar os
outros. A mensagem central é aquela que o autor quis primariamente
transmitir, o que implica identificar não só uma ideia mas também o
efeito que esse autor quis produzir. Se um texto foi escrito para
consolar, não deveria ser utilizado para corrigir erros; se foi escrito
para exortar, não deveria ser utilizado para instruir; se foi escrito
para ensinar algo sobre Deus, não deveria ser utilizado para explicar
várias opiniões teológicas; se foi escrito para levar ao louvor ou ao
serviço missionário, não o utilizemos para informar sobre as últimas
notícias.
148. É verdade que, para se entender adequadamente o sentido da
mensagem central dum texto, é preciso colocá-lo em ligação com o
ensinamento da Bíblia inteira, transmitida pela Igreja. Este é um
princípio importante da interpretação bíblica, que tem em conta que o
Espírito Santo não inspirou só uma parte, mas a Bíblia inteira, e que,
nalgumas questões, o povo cresceu na sua compreensão da vontade de Deus a
partir da experiência vivida. Assim se evitam interpretações
equivocadas ou parciais, que contradizem outros ensinamentos da mesma
Escritura. Mas isto não significa enfraquecer a acentuação própria e
específica do texto que se deve pregar. Um dos defeitos duma pregação
enfadonha e ineficaz é precisamente não poder transmitir a força própria
do texto que foi proclamado.
149. O pregador «deve ser o primeiro a desenvolver uma grande
familiaridade pessoal com a Palavra de Deus: não lhe basta conhecer o
aspecto linguístico ou exegético, sem dúvida necessário; precisa de se
abeirar da Palavra com o coração dócil e orante, a fim de que ela
penetre a fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere nele uma nova
mentalidade».[115]
Faz-nos bem renovar, cada dia, cada domingo, o nosso ardor na
preparação da homilia, e verificar se, em nós mesmos, cresce o amor pela
Palavra que pregamos. É bom não esquecer que, «particularmente, a maior
ou menor santidade do ministro influi sobre o anúncio da Palavra».[116] Como diz São Paulo, «falamos, não para agradar aos homens, mas a Deus que põe à prova os nossos corações» (1 Ts
2, 4). Se está vivo este desejo de, primeiro, ouvirmos nós a Palavra
que temos de pregar, esta transmitir-se-á duma maneira ou doutra ao povo
fiel de Deus: «A boca fala da abundância do coração» (Mt 12,
34). As leituras do domingo ressoarão com todo o seu esplendor no
coração do povo, se primeiro ressoarem assim no coração do Pastor.
150. Jesus irritava-Se com pretensiosos mestres, muito exigentes
com os outros, que ensinavam a Palavra de Deus mas não se deixavam
iluminar por ela: «Atam fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos aos
ombros dos outros, mas eles não põem nem um dedo para os deslocar» (Mt
23, 4). E o Apóstolo São Tiago exortava: «Meus irmãos, não haja muitos
entre vós que pretendam ser mestres, sabendo que nós teremos um
julgamento mais severo» (3, 1). Quem quiser pregar, deve primeiro estar
disposto a deixar-se tocar pela Palavra e fazê-la carne na sua vida
concreta. Assim, a pregação consistirá na actividade tão intensa e
fecunda que é «comunicar aos outros o que foi contemplado».[117]
Por tudo isto, antes de preparar concretamente o que vai dizer na
pregação, o pregador tem que aceitar ser primeiro trespassado por essa
Palavra que há-de trespassar os outros, porque é uma Palavra viva e eficaz,
que, como uma espada, «penetra até à divisão da alma e do corpo, das
articulações e das medulas, e discerne os sentimentos e intenções do
coração» (Heb 4, 12). Isto tem um valor pastoral. Mesmo nesta
época, a gente prefere escutar as testemunhas: «Tem sede de
autenticidade (...), reclama evangelizadores que lhe falem de um Deus
que eles conheçam e lhes seja familiar como se eles vissem o invisível».[118]
151. Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessemos
de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do
Evangelho, e não deixemos cair os braços. Indispensável é que o pregador
esteja seguro de que Deus o ama, de que Jesus Cristo o salvou, de que o
seu amor tem sempre a última palavra. À vista de tanta beleza, sentirá
muitas vezes que a sua vida não lhe dá plenamente glória e desejará
sinceramente corresponder melhor a um amor tão grande. Todavia, se não
se detém com sincera abertura a escutar esta Palavra, se não deixa que a
mesma toque a sua vida, que o interpele, exorte, mobilize, se não
dedica tempo para rezar com esta Palavra, então na realidade será um
falso profeta, um embusteiro ou um charlatão vazio. Em todo o caso,
desde que reconheça a sua pobreza e deseje comprometer-se mais, sempre
poderá dar Jesus Cristo, dizendo como Pedro: «Não tenho ouro nem prata,
mas o que tenho, isto te dou» (Act 3, 6). O Senhor quer servir-Se
de nós como seres vivos, livres e criativos, que se deixam penetrar
pela sua Palavra antes de a transmitir; a sua mensagem deve passar
realmente através do pregador, e não só pela sua razão, mas tomando
posse de todo o seu ser. O Espírito Santo, que inspirou a Palavra, é
quem «hoje ainda, como nos inícios da Igreja, age em cada um dos
evangelizadores que se deixa possuir e conduzir por Ele, e põe na sua
boca as palavras que ele sozinho não poderia encontrar».[119]
152. Há uma modalidade concreta para escutarmos aquilo que o
Senhor nos quer dizer na sua Palavra e nos deixarmos transformar pelo
Espírito: designamo-la por «lectio divina». Consiste na leitura
da Palavra de Deus num tempo de oração, para lhe permitir que nos
ilumine e renove. Esta leitura orante da Bíblia não está separada do
estudo que o pregador realiza para individuar a mensagem central do
texto; antes pelo contrário, é dela que deve partir para procurar
descobrir aquilo que essa mesma mensagem tem a dizer à sua
própria vida. A leitura espiritual dum texto deve partir do seu sentido
literal. Caso contrário, uma pessoa facilmente fará o texto dizer o que
lhe convém, o que serve para confirmar as suas próprias decisões, o que
se adapta aos seus próprios esquemas mentais. E isto seria, em última
análise, usar o sagrado para proveito próprio e passar esta confusão
para o povo de Deus. Nunca devemos esquecer-nos de que, por vezes,
«também Satanás se disfarça em anjo de luz» (2 Cor 11, 14).
153. Na presença de Deus, numa leitura tranquila do texto, é bom perguntar-se, por exemplo: «Senhor, a mim
que me diz este texto? Com esta mensagem, que quereis mudar na minha
vida? Que é que me dá fastídio neste texto? Porque é que isto não me
interessa?»; ou então: «De que gosto? Em que me estimula esta Palavra?
Que me atrai? E porque me atrai?». Quando se procura ouvir o Senhor, é
normal ter tentações. Uma delas é simplesmente sentir-se chateado e
acabrunhado e dar tudo por encerrado; outra tentação muito comum é
começar a pensar naquilo que o texto diz aos outros, para evitar de o
aplicar à própria vida. Acontece também começar a procurar desculpas,
que nos permitam diluir a mensagem específica do texto. Outras vezes
pensamos que Deus nos exige uma decisão demasiado grande, que ainda não
estamos em condições de tomar. Isto leva muitas pessoas a perderem a
alegria do encontro com a Palavra, mas isso significaria esquecer que
ninguém é mais paciente do que Deus Pai, ninguém compreende e sabe
esperar como Ele. Deus convida sempre a dar um passo mais, mas não exige
uma resposta completa, se ainda não percorremos o caminho que a torna
possível. Apenas quer que olhemos com sinceridade a nossa vida e a
apresentemos sem fingimento diante dos seus olhos, que estejamos
dispostos a continuar a crescer, e peçamos a Ele o que ainda não podemos
conseguir.
154. O pregador deve também pôr-se à escuta do povo, para
descobrir aquilo que os fiéis precisam de ouvir. Um pregador é um
contemplativo da Palavra e também um contemplativo do povo. Desta forma,
descobre «as aspirações, as riquezas e as limitações, as maneiras de
orar, de amar, de encarar a vida e o mundo, que caracterizam este ou
aquele aglomerado humano», prestando atenção «ao povo concreto com os seus sinais e símbolos e respondendo aos problemas que apresenta».[120]
Trata-se de relacionar a mensagem do texto bíblico com uma situação
humana, com algo que as pessoas vivem, com uma experiência que precisa
da luz da Palavra. Esta preocupação não é ditada por uma atitude
oportunista ou diplomática, mas é profundamente religiosa e pastoral. No
fundo, é uma «sensibilidade espiritual para saber ler nos
acontecimentos a mensagem de Deus»,[121] e isto é muito mais do que encontrar algo interessante para dizer. Procura-se descobrir «o que o Senhor tem a dizer nessas circunstâncias».[122] Então a preparação da pregação transforma-se num exercício de discernimento evangélico,
no qual se procura reconhecer – à luz do Espírito – «um “apelo” que
Deus faz ressoar na própria situação histórica: também nele e através
dele, Deus chama o crente».[123]
155. Nesta busca, é possível recorrer apenas a alguma experiência
humana frequente, como, por exemplo, a alegria dum reencontro, as
desilusões, o medo da solidão, a compaixão pela dor alheia, a incerteza
perante o futuro, a preocupação com um ser querido, etc.; mas faz falta
intensificar a sensibilidade para se reconhecer o que isso realmente tem
a ver com a vida das pessoas. Recordemos que nunca se deve responder a perguntas que ninguém se põe,
nem convém fazer a crónica da actualidade para despertar interesse;
para isso, já existem os programas televisivos. Em todo o caso, é
possível partir de algum facto para que a Palavra possa repercutir
fortemente no seu apelo à conversão, à adoração, a atitudes concretas de
fraternidade e serviço, etc., porque acontece, às vezes, que algumas
pessoas gostam de ouvir comentários sobre a realidade na pregação, mas
nem por isso se deixam interpelar pessoalmente.
156. Alguns acreditam que podem ser bons pregadores por saber o que devem dizer, mas descuidam o como,
a forma concreta de desenvolver uma pregação. Zangam-se quando os
outros não os ouvem ou não os apreciam, mas talvez não se tenham
empenhado por encontrar a forma adequada de apresentar a mensagem.
Lembremo-nos de que «a evidente importância do conteúdo da evangelização
não deve esconder a importância dos métodos e dos meios da mesma
evangelização».[124]
A preocupação com a forma de pregar também é uma atitude profundamente
espiritual. É responder ao amor de Deus, entregando-nos com todas as
nossas capacidades e criatividade à missão que Ele nos confia; mas
também é um exímio exercício de amor ao próximo, porque não queremos
oferecer aos outros algo de má qualidade. Na Bíblia, por exemplo,
aparece a recomendação para se preparar a pregação de modo a garantir
uma apropriada extensão: «Sê conciso no teu falar: muitas coisas em
poucas palavras» (Sir 32, 8).
157. Apenas, para exemplificar, recordemos alguns recursos
práticos que podem enriquecer uma pregação e torná-la mais atraente. Um
dos esforços mais necessários é aprender a usar imagens na pregação,
isto é, a falar por imagens. Às vezes usam-se exemplos para tornar mais
compreensível algo que se quer explicar, mas estes exemplos
frequentemente dirigem-se apenas ao entendimento, enquanto as imagens
ajudam a apreciar e acolher a mensagem que se quer transmitir. Uma
imagem fascinante faz com que se sinta a mensagem como algo familiar,
próximo, possível, relacionado com a própria vida. Uma imagem apropriada
pode levar a saborear a mensagem que se quer transmitir, desperta um
desejo e motiva a vontade na direcção do Evangelho. Uma boa homilia,
como me dizia um antigo professor, deve conter «uma ideia, um
sentimento, uma imagem».
158. Já dizia Paulo VI que os fiéis «esperam muito desta pregação e
dela poderão tirar fruto, contanto que ela seja simples, clara,
directa, adaptada».[125]
A simplicidade tem a ver com a linguagem utilizada. Deve ser linguagem
que os destinatários compreendam, para não correr o risco de falar ao
vento. Acontece frequentemente que os pregadores usam palavras que
aprenderam nos seus estudos e em certos ambientes, mas que não fazem
parte da linguagem comum das pessoas que os ouvem. Há palavras próprias
da teologia ou da catequese, cujo significado não é compreensível para a
maioria dos cristãos. O maior risco dum pregador é habituar-se à sua
própria linguagem e pensar que todos os outros a usam e compreendem
espontaneamente. Se se quer adaptar à linguagem dos outros, para poder
chegar até eles com a Palavra, deve-se escutar muito, é preciso
partilhar a vida das pessoas e prestar-lhes benévola atenção. A
simplicidade e a clareza são duas coisas diferentes. A linguagem pode
ser muito simples, mas pouco clara a pregação. Pode-se tornar
incompreensível pela desordem, pela sua falta de lógica, ou porque trata
vários temas ao mesmo tempo. Por isso, outro cuidado necessário é
procurar que a pregação tenha unidade temática, uma ordem clara e
ligação entre as frases, de modo que as pessoas possam facilmente seguir
o pregador e captar a lógica do que lhes diz.
159. Outra característica é a linguagem positiva. Não diz tanto o
que não se deve fazer, como sobretudo propõe o que podemos fazer melhor.
E, se aponta algo negativo, sempre procura mostrar também um valor
positivo que atraia, para não se ficar pela queixa, o lamento, a crítica
ou o remorso. Além disso, uma pregação positiva oferece sempre
esperança, orienta para o futuro, não nos deixa prisioneiros da
negatividade. Como é bom que sacerdotes, diáconos e leigos se reúnam
periodicamente para encontrarem, juntos, os recursos que tornem mais
atraente a pregação!
160. O mandato missionário do Senhor inclui o apelo ao crescimento da fé, quando diz: «ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt
28, 20). Daqui se vê claramente que o primeiro anúncio deve desencadear
também um caminho de formação e de amadurecimento. A evangelização
procura também o crescimento, o que implica tomar muito a sério em cada
pessoa o projecto que Deus tem para ela. Cada ser humano precisa sempre
mais de Cristo, e a evangelização não deveria deixar que alguém se
contente com pouco, mas possa dizer com plena verdade: «Já não sou eu
que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gal 2, 20).
161. Não seria correcto que este apelo ao crescimento fosse
interpretado, exclusiva ou prioritariamente, como formação doutrinal.
Trata-se de «cumprir» aquilo que o Senhor nos indicou como resposta ao
seu amor, sobressaindo, junto com todas as virtudes, aquele mandamento
novo que é o primeiro, o maior, o que melhor nos identifica como
discípulos: «É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como
Eu vos amei» (Jo 15, 12). É evidente que, quando os autores do
Novo Testamento querem reduzir a mensagem moral cristã a uma última
síntese, ao mais essencial, apresentam-nos a exigência irrenunciável do
amor ao próximo: «Quem ama o próximo cumpre plenamente a lei. (…) É no amor que está o pleno cumprimento da lei» (Rm
13, 8.10). De igual modo, para São Paulo, o mandamento do amor não só
resume a lei mas constitui o centro e a razão de ser da mesma: «Toda a
lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gal
5, 14). E, às suas comunidades, apresenta a vida cristã como um caminho
de crescimento no amor: «O Senhor vos faça crescer e superabundar de
caridade uns para com os outros e para com todos» (1 Ts 3, 12). Também São Tiago exorta os cristãos a cumprir «a lei do Reino, de acordo com a Escritura: Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (2, 8), acabando por não citar nenhum preceito.
162. Entretanto, este caminho de resposta e crescimento aparece
sempre precedido pelo dom, porque o antecede aquele outro pedido do
Senhor: «baptizando-os em nome...» (Mt 28, 19). A adopção como filhos que o Pai oferece gratuitamente e a iniciativa do dom da sua graça (cf. Ef 2, 8-9; 1 Cor
4, 7) são a condição que torna possível esta santificação constante,
que agrada a Deus e Lhe dá glória. É deixar-se transformar em Cristo,
vivendo progressivamente «de acordo com o Espírito» (Rm 8, 5).
163. A educação e a catequese estão ao serviço deste crescimento.
Já temos à disposição vários textos do Magistério e subsídios sobre a
catequese, preparados pela Santa Sé e por diversos episcopados. Lembro a
Exortação Apostólica Catechesi Tradendae (1979), o Directório Geral para a Catequese (1997)
e outros documentos cujo conteúdo, sempre actual, não é necessário
repetir aqui. Queria deter-me apenas nalgumas considerações que me
parece oportuno evidenciar.
164. Voltámos a descobrir que também na catequese tem um papel fundamental o primeiro anúncio ou querigma, que deve ocupar o centro da actividade evangelizadora e de toda a tentativa de renovação eclesial. O querigma
é trinitário. É o fogo do Espírito que se dá sob a forma de línguas e
nos faz crer em Jesus Cristo, que, com a sua morte e ressurreição, nos
revela e comunica a misericórdia infinita do Pai. Na boca do catequista,
volta a ressoar sempre o primeiro anúncio: «Jesus Cristo ama-te, deu a
sua vida para te salvar, e agora vive contigo todos os dias para te
iluminar, fortalecer, libertar». Ao designar-se como «primeiro» este
anúncio, não significa que o mesmo se situa no início e que, em seguida,
se esquece ou substitui por outros conteúdos que o superam; é o
primeiro em sentido qualitativo, porque é o anúncio principal,
aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e
aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou doutra,
durante a catequese, em todas as suas etapas e momentos.[126] Por isso, também «o sacerdote, como a Igreja, deve crescer na consciência da sua permanente necessidade de ser evangelizado».[127]
165. Não se deve pensar que, na catequese, o querigma é
deixado de lado em favor duma formação supostamente mais «sólida». Nada
há de mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais consistente e mais
sábio que esse anúncio. Toda a formação cristã é, primariamente, o
aprofundamento do querigma que se vai, cada vez mais e melhor,
fazendo carne, que nunca deixa de iluminar a tarefa catequética, e
permite compreender adequadamente o sentido de qualquer tema que se
desenvolve na catequese. É o anúncio que dá resposta ao anseio de
infinito que existe em todo o coração humano. A centralidade do querigma
requer certas características do anúncio que hoje são necessárias em
toda a parte: que exprima o amor salvífico de Deus como prévio à
obrigação moral e religiosa, que não imponha a verdade mas faça apelo à
liberdade, que seja pautado pela alegria, o estímulo, a vitalidade e uma
integralidade harmoniosa que não reduza a pregação a poucas doutrinas,
por vezes mais filosóficas que evangélicas. Isto exige do evangelizador
certas atitudes que ajudam a acolher melhor o anúncio: proximidade,
abertura ao diálogo, paciência, acolhimento cordial que não condena.
166. Outra característica da catequese, que se desenvolveu nas últimas décadas, é a iniciação mistagógica,[128]
que significa essencialmente duas coisas: a necessária progressividade
da experiência formativa na qual intervém toda a comunidade e uma
renovada valorização dos sinais litúrgicos da iniciação cristã. Muitos
manuais e planificações ainda não se deixaram interpelar pela
necessidade duma renovação mistagógica, que poderia assumir formas muito
diferentes de acordo com o discernimento de cada comunidade educativa. O
encontro catequético é um anúncio da Palavra e está centrado nela, mas
precisa sempre duma ambientação adequada e duma motivação atraente, do
uso de símbolos eloquentes, da sua inserção num amplo processo de
crescimento e da integração de todas as dimensões da pessoa num caminho
comunitário de escuta e resposta.
167. É bom que toda a catequese preste uma especial atenção à «via da beleza (via pulchritudinis)».[129]
Anunciar Cristo significa mostrar que crer n’Ele e segui-Lo não é algo
apenas verdadeiro e justo, mas também belo, capaz de cumular a vida dum
novo esplendor e duma alegria profunda, mesmo no meio das provações.
Nesta perspectiva, todas as expressões de verdadeira beleza podem ser
reconhecidas como uma senda que ajuda a encontrar-se com o Senhor Jesus.
Não se trata de fomentar um relativismo estético,[130]
que pode obscurecer o vínculo indivisível entre verdade, bondade e
beleza, mas de recuperar a estima da beleza para poder chegar ao coração
do homem e fazer resplandecer nele a verdade e a bondade do
Ressuscitado. Se nós, como diz Santo Agostinho, não amamos senão o que é
belo,[131]
o Filho feito homem, revelação da beleza infinita, é sumamente amável e
atrai-nos para Si com laços de amor. Por isso, torna-se necessário que a
formação na via pulchritudinis esteja inserida na transmissão da
fé. É desejável que cada Igreja particular incentive o uso das artes na
sua obra evangelizadora, em continuidade com a riqueza do passado, mas
também na vastidão das suas múltiplas expressões actuais, a fim de
transmitir a fé numa nova «linguagem parabólica».[132]
É preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos
símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diversas
formas de beleza que se manifestam em diferentes âmbitos culturais,
incluindo aquelas modalidades não convencionais de beleza que podem ser
pouco significativas para os evangelizadores, mas tornaram-se
particularmente atraentes para os outros.
168. Relativamente à proposta moral da catequese, que convida a
crescer na fidelidade ao estilo de vida do Evangelho, é oportuno indicar
sempre o bem desejável, a proposta de vida, de maturidade, de
realização, de fecundidade, sob cuja luz se pode entender a nossa
denúncia dos males que a podem obscurecer. Mais do que como peritos em
diagnósticos apocalípticos ou juízes sombrios que se comprazem em
detectar qualquer perigo ou desvio, é bom que nos possam ver como
mensageiros alegres de propostas altas, guardiões do bem e da beleza que
resplandecem numa vida fiel ao Evangelho.
169. Numa civilização paradoxalmente ferida pelo anonimato e,
simultaneamente, obcecada com os detalhes da vida alheia, descaradamente
doente de morbosa curiosidade, a Igreja tem necessidade de um olhar
solidário para contemplar, comover-se e parar diante do outro, tantas
vezes quantas forem necessárias. Neste mundo, os ministros ordenados e
os outros agentes de pastoral podem tornar presente a fragrância da
presença solidária de Jesus e o seu olhar pessoal. A Igreja deverá
iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta «arte
do acompanhamento», para que todos aprendam a descalçar sempre as
sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3, 5). Devemos
dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar
respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e
anime a amadurecer na vida cristã.
170. Embora possa soar óbvio, o acompanhamento espiritual deve
conduzir cada vez mais para Deus, em quem podemos alcançar a verdadeira
liberdade. Alguns crêem-se livres quando caminham à margem de Deus, sem
se dar conta que ficam existencialmente órfãos, desamparados, sem um lar
para onde possam sempre voltar. Deixam de ser peregrinos para se
transformarem em errantes, que giram indefinidamente ao redor de si
mesmos, sem chegar a lado nenhum. O acompanhamento seria
contraproducente, caso se tornasse uma espécie de terapia que incentive
esta reclusão das pessoas na sua imanência e deixe de ser uma
peregrinação com Cristo para o Pai.
171. Hoje mais do que nunca precisamos de homens e mulheres que
conheçam, a partir da sua experiência de acompanhamento, o modo de
proceder onde reine a prudência, a capacidade de compreensão, a arte de
esperar, a docilidade ao Espírito, para no meio de todos defender as
ovelhas a nós confiadas dos lobos que tentam desgarrar o rebanho.
Precisamos de nos exercitar na arte de escutar, que é mais do que ouvir.
Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração que
torna possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro
encontro espiritual. Escutar ajuda-nos a individuar o gesto e a palavra
oportunos que nos desinstalam da cómoda condição de espectadores. Só a
partir desta escuta respeitosa e compassiva é que se pode encontrar os
caminhos para um crescimento genuíno, despertar o desejo do ideal
cristão, o anseio de corresponder plenamente ao amor de Deus e o anelo
de desenvolver o melhor de quanto Deus semeou na nossa própria vida. Mas
sempre com a paciência de quem está ciente daquilo que ensinava São
Tomás de Aquino: alguém pode ter a graça e a caridade, mas não praticar
bem nenhuma das virtudes «por causa de algumas inclinações contrárias»
que persistem.[133] Por outras palavras, as virtudes organizam-se sempre e necessariamente «in habitu», embora os condicionamentos possam dificultar as operações
desses hábitos virtuosos. Por isso, faz falta «uma pedagogia que
introduza a pessoa passo a passo até chegar à plena apropriação do
mistério».[134]
Para se chegar a um estado de maturidade, isto é, para que as pessoas
sejam capazes de decisões verdadeiramente livres e responsáveis, é
preciso dar tempo ao tempo, com uma paciência imensa. Como dizia o Beato
Pedro Fabro: «O tempo é o mensageiro de Deus».
172. Quem acompanha sabe reconhecer que a situação de cada pessoa
diante de Deus e a sua vida em graça são um mistério que ninguém pode
conhecer plenamente a partir do exterior. O Evangelho propõe-nos que se
corrija e ajude a crescer uma pessoa a partir do reconhecimento da
maldade objectiva das suas acções (cf. Mt 18, 15), mas sem proferir juízos sobre a sua responsabilidade e culpabilidade (cf. Mt 7, 1; Lc
6, 37). Seja como for, um válido acompanhante não transige com os
fatalismos nem com a pusilanimidade. Sempre convida a querer curar-se, a
pegar no catre (cf. Mt 9, 6), a abraçar a cruz, a deixar tudo e
partir sem cessar para anunciar o Evangelho. A experiência pessoal de
nos deixarmos acompanhar e curar, conseguindo exprimir com plena
sinceridade a nossa vida a quem nos acompanha, ensina-nos a ser
pacientes e compreensivos com os outros e habilita-nos a encontrar as
formas para despertar neles a confiança, a abertura e a vontade de
crescer.
173. O acompanhamento espiritual autêntico começa sempre e
prossegue no âmbito do serviço à missão evangelizadora. A relação de
Paulo com Timóteo e Tito é exemplo deste acompanhamento e desta formação
durante a acção apostólica. Ao mesmo tempo que lhes confia a missão de
permanecer numa cidade concreta para «acabar de organizar o que ainda
falta» (Tt 1, 5; cf. 1 Tm 1, 3-5), dá-lhes os critérios
para a vida pessoal e a actividade pastoral. Isto é claramente distinto
de todo o tipo de acompanhamento intimista, de auto-realização isolada.
Os discípulos missionários acompanham discípulos missionários.
174. Não é só a homilia que se deve alimentar da Palavra de Deus.
Toda a evangelização está fundada sobre esta Palavra escutada, meditada,
vivida, celebrada e testemunhada. A Sagrada Escritura é fonte da
evangelização. Por isso, é preciso formar-se continuamente na escuta da
Palavra. A Igreja não evangeliza, se não se deixa continuamente
evangelizar. É indispensável que a Palavra de Deus «se torne cada vez
mais o coração de toda a actividade eclesial».[135]
A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na Eucaristia, alimenta
e reforça interiormente os cristãos e torna-os capazes de um autêntico
testemunho evangélico na vida diária. Superámos já a velha contraposição
entre Palavra e Sacramento: a Palavra proclamada, viva e eficaz,
prepara a recepção do Sacramento e, no Sacramento, essa Palavra alcança a
sua máxima eficácia.
175. O estudo da Sagrada Escritura deve ser uma porta aberta para todos os crentes.[136] É fundamental que a Palavra revelada fecunde radicalmente a catequese e todos os esforços para transmitir a fé.[137]
A evangelização requer a familiaridade com a Palavra de Deus, e isto
exige que as dioceses, paróquias e todos os grupos católicos proponham
um estudo sério e perseverante da Bíblia e promovam igualmente a sua
leitura orante pessoal e comunitária.[138]
Nós não procuramos Deus tacteando, nem precisamos de esperar que Ele
nos dirija a palavra, porque realmente «Deus falou, já não é o grande
desconhecido, mas mostrou-Se a Si mesmo».[139] Acolhamos o tesouro sublime da Palavra revelada!
176. Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo.
«Nenhuma definição parcial e fragmentada, porém, chegará a dar razão da
realidade rica, complexa e dinâmica que é a evangelização, a não ser com
o risco de a empobrecer e até mesmo de a mutilar».[140]
Desejo agora partilhar as minhas preocupações relacionadas com a
dimensão social da evangelização, precisamente porque, se esta dimensão
não for devidamente explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar o
sentido autêntico e integral da missão evangelizadora.
177.O querigma possui um conteúdo inevitavelmente social:
no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o
compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma
repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade.
178. Confessar um Pai que ama infinitamente cada ser humano implica descobrir que «assim lhe confere uma dignidade infinita».[141]
Confessar que o Filho de Deus assumiu a nossa carne humana significa
que cada pessoa humana foi elevada até ao próprio coração de Deus.
Confessar que Jesus deu o seu sangue por nós impede-nos de ter qualquer
dúvida acerca do amor sem limites que enobrece todo o ser humano. A sua
redenção tem um sentido social, porque «Deus, em Cristo, não redime
somente a pessoa individual, mas também as relações sociais entre os
homens».[142]
Confessar que o Espírito Santo actua em todos implica reconhecer que
Ele procura permear toda a situação humana e todos os vínculos sociais:
«O Espírito Santo possui uma inventiva infinita, própria da mente
divina, que sabe prover a desfazer os nós das vicissitudes humanas mais
complexas e impenetráveis».[143]
A evangelização procura colaborar também com esta acção libertadora do
Espírito. O próprio mistério da Trindade nos recorda que somos criados à
imagem desta comunhão divina, pelo que não podemos realizar-nos nem
salvar-nos sozinhos. A partir do coração do Evangelho, reconhecemos a
conexão íntima que existe entre evangelização e promoção humana, que se
deve necessariamente exprimir e desenvolver em toda a acção
evangelizadora. A aceitação do primeiro anúncio, que convida a deixar-se
amar por Deus e a amá-Lo com o amor que Ele mesmo nos comunica, provoca
na vida da pessoa e nas suas acções uma primeira e fundamental reacção:
desejar, procurar e ter a peito o bem dos outros.
179. Este laço indissolúvel entre a recepção do anúncio salvífico e
um efectivo amor fraterno exprime-se nalguns textos da Escritura, que
convém considerar e meditar atentamente para tirar deles todas as
consequências. É uma mensagem a que frequentemente nos habituamos e
repetimos quase mecanicamente, mas sem nos assegurarmos de que tenha
real incidência na nossa vida e nas nossas comunidades. Como é perigoso e
prejudicial este habituar-se que nos leva a perder a maravilha, a
fascinação, o entusiasmo de viver o Evangelho da fraternidade e da
justiça! A Palavra de Deus ensina que, no irmão, está o prolongamento
permanente da Encarnação para cada um de nós: «Sempre que fizestes isto a
um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). O que fizermos aos outros, tem uma dimensão transcendente: «Com a medida com que medirdes, assim sereis medidos» (Mt
7, 2); e corresponde à misericórdia divina para connosco: «Sede
misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não
sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e
sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado (...). A medida que usardes com
os outros será usada convosco» (Lc 6, 36-38). Nestes textos,
exprime-se a absoluta prioridade da «saída de si próprio para o irmão»,
como um dos dois mandamentos principais que fundamentam toda a norma
moral e como o sinal mais claro para discernir sobre o caminho de
crescimento espiritual em resposta à doação absolutamente gratuita de
Deus. Por isso mesmo, «também o serviço da caridade é uma dimensão
constitutiva da missão da Igreja e expressão irrenunciável da sua
própria essência».[144]
Assim como a Igreja é missionária por natureza, também brota
inevitavelmente dessa natureza a caridade efectiva para com o próximo, a
compaixão que compreende, assiste e promove.
180. Ao lermos as Escrituras, fica bem claro que a proposta do
Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. E a nossa
resposta de amor também não deveria ser entendida como uma mera soma de
pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados, o
que poderia constituir uma «caridade por receita», uma série de acções
destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc
4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que
Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de
fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso,
tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar
consequências sociais. Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro o
Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo» (Mt
6, 33). O projecto de Jesus é instaurar o Reino de seu Pai; por isso,
pede aos seus discípulos: «Proclamai que o Reino do Céu está perto» (Mt 10, 7).
181. O Reino, que se antecipa e cresce entre nós, abrange tudo,
como nos recorda aquele princípio de discernimento que Paulo VI propunha
a propósito do verdadeiro desenvolvimento: «Todos os homens e o homem
todo».[145]
Sabemos que «a evangelização não seria completa, se ela não tomasse em
consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente o
Evangelho e a vida concreta, pessoal e social, dos homens».[146]
É o critério da universalidade, próprio da dinâmica do Evangelho, dado
que o Pai quer que todos os homens se salvem; e o seu plano de salvação
consiste em «submeter tudo a Cristo, reunindo n’Ele o que há no céu e na
terra» (Ef 1, 10). O mandato é: «Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda criatura» (Mc 16, 15), porque toda «a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm
8, 19). Toda a criação significa também todos os aspectos da vida
humana, de tal modo que «a missão do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo
tem destinação universal. Seu mandato de caridade alcança todas as
dimensões da existência, todas as pessoas, todos os ambientes da
convivência e todos os povos. Nada do humano pode lhe parecer estranho».[147] A verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre história.
182. Os ensinamentos da Igreja acerca de situações contingentes
estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos e podem ser objecto
de discussão, mas não podemos evitar de ser concretos – sem pretender
entrar em detalhes – para que os grandes princípios sociais não fiquem
meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar as suas
consequências práticas, para que «possam incidir com eficácia também nas
complexas situações hodiernas».[148]
Os Pastores, acolhendo as contribuições das diversas ciências, têm o
direito de exprimir opiniões sobre tudo aquilo que diz respeito à vida
das pessoas, dado que a tarefa da evangelização implica e exige uma
promoção integral de cada ser humano. Já não se pode afirmar que a
religião deve limitar-se ao âmbito privado e serve apenas para preparar
as almas para o céu. Sabemos que Deus deseja a felicidade dos seus
filhos também nesta terra, embora estejam chamados à plenitude eterna,
porque Ele criou todas as coisas «para nosso usufruto» (1 Tm 6, 17), para que todos
possam usufruir delas. Por isso, a conversão cristã exige rever
«especialmente tudo o que diz respeito à ordem social e consecução do
bem comum».[149]
183. Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos que releguemos a
religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência
na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das
instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os
acontecimentos que interessam aos cidadãos. Quem ousaria encerrar num
templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata
Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que
nunca é cómoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo
de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor
depois da nossa passagem por ela. Amamos este magnífico planeta, onde
Deus nos colocou, e amamos a humanidade que o habita, com todos os seus
dramas e cansaços, com os seus anseios e esperanças, com os seus valores
e fragilidades. A terra é a nossa casa comum, e todos somos irmãos.
Embora «a justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da
política», a Igreja «não pode nem deve ficar à margem na luta pela
justiça».[150]
Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são chamados a preocupar-se
com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se trata, pois o
pensamento social da Igreja é primariamente positivo e construtivo,
orienta uma acção transformadora e, neste sentido, não deixa de ser um
sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao
mesmo tempo, «une o próprio empenho ao esforço em campo social das
demais Igrejas e Comunidades eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como
na prática».[151]
184. Aqui não é o momento para explanar todas as graves questões
sociais que afectam o mundo actual, algumas das quais já comentei no
segundo capítulo. Este não é um documento social e, para nos ajudar a
reflectir sobre estes vários temas, temos um instrumento muito
apropriado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
cujo uso e estudo vivamente recomendo. Além disso, nem o Papa nem a
Igreja possui o monopólio da interpretação da realidade social ou da
apresentação de soluções para os problemas contemporâneos. Posso repetir
aqui o que indicava, com grande lucidez, Paulo VI: «Perante situações,
assim tão diversificadas, torna-se-nos difícil tanto o pronunciar uma
palavra única, como o propor uma solução que tenha um valor universal.
Mas, isso não é ambição nossa, nem mesmo a nossa missão. É às
comunidades cristãs que cabe analisarem, com objectividade, a situação
própria do seu país».[152]
185. Em seguida, procurarei concentrar-me sobre duas grandes
questões que me parecem fundamentais neste momento da história.
Desenvolvê-las-ei com uma certa amplitude, porque considero que irão
determinar o futuro da humanidade. A primeira é a inclusão social dos
pobres; e a segunda, a questão da paz e do diálogo social.
186. Deriva da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se
aproximou dos pobres e marginalizados, a preocupação pelo
desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade.
187. Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser
instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres,
para que possam integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estar
docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo. Basta
percorrer as Escrituras, para descobrir como o Pai bom quer ouvir o
clamor dos pobres: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egipto,
e ouvi o seu clamor diante dos seus inspectores; conheço, na verdade,
os seus sofrimentos. Desci a fim de os libertar (...). E agora, vai; Eu
te envio...» (Ex 3, 7-8.10). E Ele mostra-Se solícito com as suas
necessidades: «Os filhos de Israel clamaram, então, ao Senhor, e o
Senhor enviou-lhes um salvador» (Jz 3, 15). Ficar surdo a este
clamor, quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o pobre,
coloca-nos fora da vontade do Pai e do seu projecto, porque esse pobre
«clamaria ao Senhor contra ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado» (Dt
15, 9). E a falta de solidariedade, nas suas necessidades, influi
directamente sobre a nossa relação com Deus: «Se te amaldiçoa na
amargura da sua alma, Aquele que o criou ouvirá a sua oração» (Sir
4, 6). Sempre retorna a antiga pergunta: «Se alguém possuir bens deste
mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração,
como é que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 3, 17).
Lembremos também com quanta convicção o Apóstolo São Tiago retomava a
imagem do clamor dos oprimidos: «Olhai que o salário que não pagastes,
aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, está a clamar; e os
clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo» (5,
4).
188. A Igreja reconheceu que a exigência de ouvir este clamor
deriva da própria obra libertadora da graça em cada um de nós, pelo que
não se trata de uma missão reservada apenas a alguns: «A Igreja, guiada
pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça e deseja responder com todas as suas forças».[153] Nesta linha, se pode entender o pedido de Jesus aos seus discípulos: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc
6, 37), que envolve tanto a cooperação para resolver as causas
estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres,
como os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as
misérias muito concretas que encontramos. Embora um pouco desgastada e,
por vezes, até mal interpretada, a palavra «solidariedade» significa
muito mais do que alguns actos esporádicos de generosidade; supõe a
criação duma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de
prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de
alguns.
189. A solidariedade é uma reacção espontânea de quem reconhece a
função social da propriedade e o destino universal dos bens como
realidades anteriores à propriedade privada. A posse privada dos bens
justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o
bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de
devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de
solidariedade, quando se fazem carne, abrem caminho a outras
transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança nas
estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas
mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas,
pesadas e ineficazes.
190. Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos
povos mais pobres da terra, porque «a paz funda-se não só no respeito
pelos direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos».[154]
Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados como
justificação para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou dos
direitos dos povos mais ricos. Respeitando a independência e a cultura
de cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o planeta é de toda a
humanidade e para toda a humanidade, e que o simples facto de ter
nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não
justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente. É preciso repetir
que «os mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos,
para poderem colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos
outros».[155]
Para falarmos adequadamente dos nossos direitos, é preciso alongar mais
o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou de outras
regiões do próprio país. Precisamos de crescer numa solidariedade que
«permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino»,[156] tal como «cada homem é chamado a desenvolver-se».[157]
191. Animados pelos seus Pastores, os cristãos são chamados, em
todo o lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos pobres, como bem se
expressaram os Bispos do Brasil: «Desejamos assumir, a cada dia, as
alegrias e esperanças, as angústias e tristezas do povo brasileiro,
especialmente das populações das periferias urbanas e das zonas rurais –
sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde – lesadas em seus direitos.
Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo o seu
sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento
suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e da
renda. O problema se agrava com a prática generalizada do desperdício».[158]
192. Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais alto. Não se
fala apenas de garantir a comida ou um decoroso «sustento» para todos,
mas «prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos».[159]
Isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente
trabalho, porque, no trabalho livre, criativo, participativo e
solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida. O
salário justo permite o acesso adequado aos outros bens que estão
destinados ao uso comum.
193. Este imperativo de ouvir o clamor dos pobres faz-se carne em
nós, quando no mais íntimo de nós mesmos nos comovemos à vista do
sofrimento alheio. Voltemos a ler alguns ensinamentos da Palavra de Deus
sobre a misericórdia, para que ressoem vigorosamente na vida da Igreja.
O Evangelho proclama: «Felizes os misericordiosos, porque alcançarão
misericórdia» (Mt 5, 7). O Apóstolo São Tiago ensina que a
misericórdia para com os outros permite-nos sair triunfantes no juízo
divino: «Falai e procedei como pessoas que hão-de ser julgadas segundo a
lei da liberdade. Porque, quem não pratica a misericórdia, será julgado
sem misericórdia. Mas a misericórdia não teme o julgamento» (2, 12-13).
Neste texto, São Tiago aparece-nos como herdeiro do que tinha de mais
rico a espiritualidade judaica do pós-exílio, a qual atribuía um
especial valor salvífico à misericórdia: «Redime o teu pecado pela
justiça, e as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes;
talvez isto consiga prolongar a tua prosperidade» (Dn 4, 24).
Nesta mesma perspectiva, a literatura sapiencial fala da esmola como
exercício concreto da misericórdia para com os necessitados: «A esmola
livra da morte e limpa de todo o pecado» (Tb 12, 9). E de forma
ainda mais sensível se exprime Ben-Sirá: «A água apaga o fogo ardente, e
a esmola expia o pecado» (3, 30). Encontramos a mesma síntese no Novo
Testamento: «Mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor
cobre a multidão dos pecados» (1 Pd 4, 8). Esta verdade permeou
profundamente a mentalidade dos Padres da Igreja, tendo exercido uma
resistência profética como alternativa cultural face ao individualismo
hedonista pagão. Recordemos apenas um exemplo: «Tal como, em perigo de
incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo
deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a
chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra
cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que
nos é oferecida e na qual podemos extinguir o incêndio».[160]
194. É uma mensagem tão clara, tão directa, tão simples e
eloquente que nenhuma hermenêutica eclesial tem o direito de
relativizar. A reflexão da Igreja sobre estes textos não deveria ofuscar
nem enfraquecer o seu sentido exortativo, mas antes ajudar a assumi-los
com coragem e ardor. Para quê complicar o que é tão simples? As
elaborações conceptuais hão-de favorecer o contacto com a realidade que
pretendem explicar, e não afastar-nos dela. Isto vale sobretudo para as
exortações bíblicas que convidam, com tanta determinação, ao amor
fraterno, ao serviço humilde e generoso, à justiça, à misericórdia para
com o pobre. Jesus ensinou-nos este caminho de reconhecimento do outro,
com as suas palavras e com os seus gestos. Para quê ofuscar o que é tão
claro? Não nos preocupemos só com não cair em erros doutrinais, mas
também com ser fiéis a este caminho luminoso de vida e sabedoria. Porque
«é frequente dirigir aos defensores da “ortodoxia” a acusação de
passividade, de indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a
situações intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que mantêm
estas situações».[161]
195. Quando São Paulo foi ter com os Apóstolos a Jerusalém para discernir «se estava a correr ou tinha corrido em vão» (Gal 2, 2), o critério-chave de autenticidade que lhe indicaram foi que não se esquecesse dos pobres (cf. Gal
2, 10). Este critério, importante para que as comunidades paulinas não
se deixassem arrastar pelo estilo de vida individualista dos pagãos, tem
uma grande actualidade no contexto actual em que tende a desenvolver-se
um novo paganismo individualista. A própria beleza do Evangelho nem
sempre a conseguimos manifestar adequadamente, mas há um sinal que nunca
deve faltar: a opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade
descarta e lança fora.
196. Às vezes somos duros de coração e de mente, esquecemo-nos,
entretemo-nos, extasiamo-nos com as imensas possibilidades de consumo e
de distracção que esta sociedade oferece. Gera-se assim uma espécie de
alienação que nos afecta a todos, pois «alienada é a sociedade que, nas
suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais
difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade
inter-humana».[162]
197. No coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres, tanto que até Ele mesmo «Se fez pobre» (2 Cor 8,
9). Todo o caminho da nossa redenção está assinalado pelos pobres. Esta
salvação veio a nós, através do «sim» duma jovem humilde, duma pequena
povoação perdida na periferia dum grande império. O Salvador nasceu num
presépio, entre animais, como sucedia com os filhos dos mais pobres; foi
apresentado no Templo, juntamente com dois pombinhos, a oferta de quem
não podia permitir-se pagar um cordeiro (cf. Lc 2, 24; Lv
5, 7); cresceu num lar de simples trabalhadores, e trabalhou com suas
mãos para ganhar o pão. Quando começou a anunciar o Reino, seguiam-No
multidões de deserdados, pondo assim em evidência o que Ele mesmo
dissera: «O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu para
anunciar a Boa No-va aos pobres» (Lc 4, 18). A quantos sentiam o
peso do sofrimento, acabrunhados pela pobreza, assegurou que Deus os
tinha no âmago do seu coração: «Felizes vós, os pobres, porque vosso é o
Reino de Deus» (Lc 6, 20); e com eles Se identificou: «Tive fome
e destes-Me de comer», ensinando que a misericórdia para com eles é a
chave do Céu (cf. Mt 25, 34-40).
198. Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria
teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus
«manifesta a sua misericórdia antes de mais» a eles.[163]
Esta preferência divina tem consequências na vida de fé de todos os
cristãos, chamados a possuírem «os mesmos sentimentos que estão em
Cristo Jesus» (Fl 2, 5). Inspirada por tal preferência, a Igreja fez uma opção pelos pobres, entendida como uma «forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja».[164]
Como ensinava Bento XVI, esta opção «está implícita na fé cristológica
naquele Deus que Se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua
pobreza».[165] Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei,
nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que
todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um
convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no
centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles:
não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser
seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa
sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles.
199. O nosso compromisso não consiste exclusivamente em acções ou
em programas de promoção e assistência; aquilo que o Espírito põe em
movimento não é um excesso de activismo, mas primariamente uma atenção prestada ao outro «considerando-o como um só consigo mesmo».[166]
Esta atenção amiga é o início duma verdadeira preocupação pela sua
pessoa e, a partir dela, desejo procurar efectivamente o seu bem. Isto
implica apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo de ser,
com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor autêntico é
sempre contemplativo, permitindo-nos servir o outro não por necessidade
ou vaida-de, mas porque ele é belo, independentemente da sua aparência:
«Do amor, pelo qual uma pessoa é agradável a outra, depende que lhe dê
algo de graça».[167] Quando amado, o pobre «é estimado como de alto valor»,[168]
e isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia,
de qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de interesses
pessoais ou políticos. Unicamente a partir desta proximidade real e
cordial é que podemos acompanhá-los adequadamente no seu caminho de
libertação. Só isto tornará possível que «os pobres se sintam, em cada
comunidade cristã, como “em casa”. Não seria, este estilo, a maior e
mais eficaz apresentação da boa nova do Reino?»[169]
Sem a opção preferencial pelos pobres, «o anúncio do Evangelho – e este
anúncio é a primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido
ou de afogar-se naquele mar de palavras que a actual sociedade da
comunicação diariamente nos apresenta».[170]
200. Dado que esta Exortação se dirige aos membros da Igreja
Católica, desejo afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que sofrem
os pobres é a falta de cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres
possui uma especial abertura à fé; tem necessidade de Deus e não podemos
deixar de lhe oferecer a sua amizade, a sua bênção, a sua Palavra, a
celebração dos Sacramentos e a proposta dum caminho de crescimento e
amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos pobres deve
traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e
prioritária.
201. Ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, porque
as suas opções de vida implicam prestar mais atenção a outras
incumbências. Esta é uma desculpa frequente nos ambientes académicos,
empresariais ou profissionais, e até mesmo eclesiais. Embora se possa
dizer, em geral, que a vocação e a missão próprias dos fiéis leigos é a
transformação das diversas realidades terrenas para que toda a
actividade humana seja transformada pelo Evangelho,[171]
ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela
justiça social: «A conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e
ao próximo, o zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos
pobres e da pobreza são exigidos a todos».[172]
Temo que também estas palavras sejam objecto apenas de alguns
comentários, sem verdadeira incidência prática. Apesar disso, tenho
confiança na abertura e nas boas disposições dos cristãos e peço-vos que
procureis, comunitariamente, novos caminhos para acolher esta renovada
proposta.
202. A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza
não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter
resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar duma mazela
que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os
planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam
considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem
radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à
autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando
as causas estruturais da desigualdade social,[173] não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.
203. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões
que deveriam estruturar toda a política económica, mas às vezes parecem
somente apêndices adicionados de fora para completar um discurso
político sem perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento
integral. Quantas palavras se tornaram molestas para este sistema!
Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade
mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se
fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade
dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em
prol da justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam
objecto duma manipulação oportunista que as desonra. A cómoda
indiferença diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas
palavras de todo o significado. A vocação dum empresário é uma nobre
tarefa, desde que se deixe interpelar por um sentido mais amplo da vida;
isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum com o seu esforço
por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis a todos.
204. Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível
do mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o
crescimento económico, embora o pressuponha; requer decisões, programas,
mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor
distribuição das entradas, para a criação de oportunidades de trabalho,
para uma promoção integral dos pobres que supere o mero
assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a
economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como
quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de
trabalho e criando assim novos excluídos.
205. Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de
entrar num autêntico diálogo que vise efectivamente sanar as raízes
profundas e não a aparência dos males do nosso mundo. A política, tão
denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da
caridade, porque busca o bem comum.[174]
Temos de nos convencer que a caridade «é o princípio não só das
micro-relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo,
mas também das macro-relações como relacionamentos sociais, económicos,
políticos».[175]
Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham
verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É
indispensável que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e
alarguem as suas perspectivas, procurando que haja trabalho digno,
instrução e cuidados sanitários para todos os cidadãos. E porque não
acudirem a Deus pedindo-Lhe que inspire os seus planos? Estou convencido
de que, a partir duma abertura à transcendência, poder-se-ia formar uma
nova mentalidade política e económica que ajudaria a superar a
dicotomia absoluta entre a economia e o bem comum social.
206. A economia – como indica o próprio termo – deveria ser a arte
de alcançar uma adequada administração da casa comum, que é o mundo
inteiro. Todo o acto económico duma certa envergadura, que se realiza em
qualquer parte do planeta, repercute-se no mundo inteiro, pelo que
nenhum Governo pode agir à margem duma responsabilidade comum. Na
realidade, torna-se cada vez mais difícil encontrar soluções a nível
local para as enormes contradições globais, pelo que a política local se
satura de problemas por resolver. Se realmente queremos alcançar uma
economia global saudável, precisamos, neste momento da história, de um
modo mais eficiente de interacção que, sem prejuízo da soberania das
nações, assegure o bem-estar económico a todos os países e não apenas a
alguns.
207. E qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender
subsistir tranquila sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma
eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão de
todos, correrá também o risco da sua dissolução, mesmo que fale de temas
sociais ou critique os Governos. Facilmente acabará submersa pelo
mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas, reuniões
infecundas ou discursos vazios.
208. Se alguém se sentir ofendido com as minhas palavras, saiba
que as exprimo com estima e com a melhor das intenções, longe de
qualquer interesse pessoal ou ideologia política. A minha palavra não é a
dum inimigo nem a dum opositor. A mim interessa-me apenas procurar que,
quantos vivem escravizados por uma mentalidade individualista,
indiferente e egoísta, possam libertar-se dessas cadeias indignas e
alcancem um estilo de vida e de pensamento mais humano, mais nobre, mais
fecundo, que dignifique a sua passagem por esta terra.
209. Jesus, o evangelizador por excelência e o Evangelho em pessoa, identificou-Se especialmente com os mais pequeninos (cf. Mt
25, 40). Isto recorda-nos, a todos os cristãos, que somos chamados a
cuidar dos mais frágeis da Terra. Mas, no modelo «do êxito» e
«individualista» em vigor, parece que não faz sentido investir para que
os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na vida.
210. Embora aparentemente não nos traga benefícios tangíveis e
imediatos, é indispensável prestar atenção e debruçar-nos sobre as novas
formas de pobreza e fragilidade, nas quais somos chamados a reconhecer
Cristo sofredor: os sem abrigo, os toxicodependentes, os refugiados, os
povos indígenas, os idosos cada vez mais sós e abandonados, etc. Os
migrantes representam um desafio especial para mim, por ser Pastor duma
Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos. Por isso, exorto os
países a uma abertura generosa, que, em vez de temer a destruição da
identidade local, seja capaz de criar novas sínteses culturais. Como são
belas as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que
são diferentes, fazendo desta integração um novo factor de progresso!
Como são encantadoras as cidades que, já no seu projecto arquitectónico,
estão cheias de espaços que unem, relacionam, favorecem o
reconhecimento do outro!
211. Sempre me angustiou a situação das pessoas que são objecto
das diferentes formas de tráfico. Quem dera que se ouvisse o grito de
Deus, perguntando a todos nós: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4,
9). Onde está o teu irmão escravo? Onde está o irmão que estás matando
cada dia na pequena fábrica clandestina, na rede da prostituição, nas
crianças usadas para a mendicidade, naquele que tem de trabalhar às
escondidas porque não foi regularizado? Não nos façamos de distraídos!
Há muita cumplicidade... A pergunta é para todos! Nas nossas cidades,
está instalado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as mãos
cheias de sangue devido a uma cómoda e muda cumplicidade.
212. Duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de
exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores
possibilidades de defender os seus direitos. E todavia, também entre
elas, encontramos continuamente os mais admiráveis gestos de heroísmo
quotidiano na defesa e cuidado da fragilidade das suas famílias.
213. Entre estes seres frágeis, de que a Igreja quer cuidar com
predilecção, estão também os nascituros, os mais inermes e inocentes de
todos, a quem hoje se quer negar a dignidade humana para poder fazer
deles o que apetece, tirando-lhes a vida e promovendo legislações para
que ninguém o possa impedir. Muitas vezes, para ridiculizar jocosamente a
defesa que a Igreja faz da vida dos nascituros, procura-se apresentar a
sua posição como ideológica, obscurantista e conservadora; e no entanto
esta defesa da vida nascente está intimamente ligada à defesa de
qualquer direito humano. Supõe a convicção de que um ser humano é sempre
sagrado e inviolável, em qualquer situação e em cada etapa do seu
desenvolvimento. É fim em si mesmo, e nunca um meio para resolver outras
dificuldades. Se cai esta convicção, não restam fundamentos sólidos e
permanentes para a defesa dos direitos humanos, que ficariam sempre
sujeitos às conveniências contingentes dos poderosos de turno. Por si só
a razão é suficiente para se reconhecer o valor inviolável de qualquer
vida humana, mas, se a olhamos também a partir da fé, «toda a violação
da dignidade pessoal do ser humano clama por vingança junto de Deus e
torna-se ofensa ao Criador do homem».[176]
214. E precisamente porque é uma questão que mexe com a coerência
interna da nossa mensagem sobre o valor da pessoa humana, não se deve
esperar que a Igreja altere a sua posição sobre esta questão. A
propósito, quero ser completamente honesto. Este não é um assunto
sujeito a supostas reformas ou «modernizações». Não é opção progressista
pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana. Mas é
verdade também que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as
mulheres que estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes
aparece como uma solução rápida para as suas profundas angústias,
particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu como resultado
duma violência ou num contexto de extrema pobreza. Quem pode deixar de
compreender estas situações de tamanho sofrimento?
215. Há outros seres frágeis e indefesos, que muitas vezes ficam à
mercê dos interesses económicos ou dum uso indiscriminado. Refiro-me ao
conjunto da criação. Nós, os seres humanos, não somos meramente
beneficiários, mas guardiões das outras criaturas. Pela nossa realidade
corpórea, Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a
desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos
lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação. Não
deixemos que, à nossa passagem, fiquem sinais de destruição e de morte
que afectem a nossa vida e a das gerações futuras.[177]
Neste sentido, faço meu o expressivo e profético lamento que, já há
vários anos, formularam os Bispos das Filipinas: «Uma incrível variedade
de insectos vivia no bosque; e estavam ocupados com todo o tipo de
tarefas. (...) Os pássaros voavam pelo ar, as suas penas brilhantes e os
seus variados gorjeios acrescentavam cor e melodia ao verde dos
bosques. (...) Deus quis que esta terra fosse para nós, suas criaturas
especiais, mas não para a podermos destruir ou transformar num baldio.
(...) Depois de uma única noite de chuva, observa os rios de
castanho-chocolate da tua localidade e lembra-te que estão a arrastar o
sangue vivo da terra para o mar. (...) Como poderão os peixes nadar em
esgotos como o rio Pasig e muitos outros rios que poluímos? Quem
transformou o maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos
despojados de vida e de cor?»[178]
216.Pequenos mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de
Assis, todos nós, cristãos, somos chamados a cuidar da fragilidade do
povo e do mundo em que vivemos.
217. Falámos muito sobre a alegria e o amor, mas a Palavra de Deus menciona também o fruto da paz (cf. Gal 5, 22).
218. A paz social não pode ser entendida como irenismo ou como
mera ausência de violência obtida pela imposição de uma parte sobre as
outras. Também seria uma paz falsa aquela que servisse como desculpa
para justificar uma organização social que silencie ou tranquilize os
mais pobres, de modo que aqueles que gozam dos maiores benefícios possam
manter o seu estilo de vida sem sobressaltos, enquanto os outros
sobrevivem como podem. As reivindicações sociais, que têm a ver com a
distribuição das entradas, a inclusão social dos pobres e os direitos
humanos não podem ser sufocados com o pretexto de construir um consenso
de escritório ou uma paz efémera para uma minoria feliz. A dignidade da
pessoa humana e o bem comum estão por cima da tranquilidade de alguns
que não querem renunciar aos seus privilégios. Quando estes valores são
afectados, é necessária uma voz profética.
219. E a paz também «não se reduz a uma ausência de guerra, fruto
do equilíbrio sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na
busca duma ordem querida por Deus, que traz consigo uma justiça mais
perfeita entre os homens».[179]
Enfim, uma paz que não surja como fruto do desenvolvimento integral de
todos, não terá futuro e será sempre semente de novos conflitos e
variadas formas de violência.
220. Em cada nação, os habitantes desenvolvem a dimensão social da
sua vida, configurando-se como cidadãos responsáveis dentro de um povo e
não como massa arrastada pelas forças dominantes. Lembremo-nos que «ser
cidadão fiel é uma virtude, e a participação na vida política é uma
obrigação moral».[180] Mas, tornar-se um povo
é algo mais, exigindo um processo constante no qual cada nova geração
está envolvida. É um trabalho lento e árduo que exige querer integrar-se
e aprender a fazê-lo até se desenvolver uma cultura do encontro numa
harmonia pluriforme.
221. Para avançar nesta construção de um povo em paz, justiça e
fraternidade, há quatro princípios relacionados com tensões bipolares
próprias de toda a realidade social. Derivam dos grandes postulados da
Doutrina Social da Igreja, que constituem o «primeiro e fundamental
parâmetro de referência para a interpretação e o exame dos fenómenos
sociais».[181]
À luz deles, desejo agora propor estes quatro princípios que orientam
especificamente o desenvolvimento da convivência social e a construção
de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projecto comum.
Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro
caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro.
222. Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite. A
plenitude gera a vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que nos
aparece pela frente. O «tempo», considerado em sentido amplo, faz
referimento à plenitude como expressão do horizonte que se abre diante
de nós, e o momento é expressão do limite que se vive num espaço
circunscrito. Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e
a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro
como causa final que atrai. Daqui surge um primeiro princípio para
progredir na construção de um povo: o tempo é superior ao espaço.
223. Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a
obsessão pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência,
situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da
realidade impõe. É um convite a assumir a tensão entre plenitude e
limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados que, às vezes, se nota
na actividade sociopolítica é privilegiar os espaços de poder em vez
dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder
como loucos para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar
posse de todos os espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar os
processos e pretender pará-los. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços.
O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos duma
cadeia em constante crescimento, sem marcha atrás. Trata-se de
privilegiar as acções que geram novos dinamismos na sociedade e
comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificar
em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com
convicções claras e tenazes.
224. Às vezes interrogo-me sobre quais são as pessoas que, no
mundo actual, se preocupam realmente mais com gerar processos que
construam um povo do que com obter resultados imediatos que produzam
ganhos políticos fáceis, rápidos e efémeros, mas que não constroem a
plenitude humana. A história julgá-los-á talvez com aquele critério
enunciado por Romano Guardini: «O único padrão para avaliar justamente
uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve e alcança
uma autêntica razão de ser a plenitude da existência humana, de acordo com o carácter peculiar e as possibilidades da dita época».[182]
225. Este critério é muito apropriado também para a evangelização,
que exige ter presente o horizonte, adoptar os processos possíveis e a
estrada longa. O próprio Senhor, na sua vida mortal, deu a entender
várias vezes aos seus discípulos que havia coisas que ainda não podiam
compreender e era necessário esperar o Espírito Santo (cf. Jo 16, 12-13). A parábola do trigo e do joio (cf. Mt
13, 24-30) descreve um aspecto importante de evangelização que consiste
em mostrar como o inimigo pode ocupar o espaço do Reino e causar dano
com o joio, mas é vencido pela bondade do trigo que se manifesta com o
tempo.
226. O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado; deve ser
aceitado. Mas, se ficamos encurralados nele, perdemos a perspectiva, os
horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada. Quando
paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda
da realidade.
227. Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e passam
adiante como se nada fosse, lavam-se as mãos para poder continuar com a
sua vida. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam
prisioneiros, perdem o horizonte, projectam nas instituições as suas
próprias confusões e insatisfações e, assim, a unidade torna-se
impossível. Mas há uma terceira forma, a mais adequada, de enfrentar o
conflito: é aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no
elo de ligação de um novo processo. «Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9)!
228. Deste modo, torna-se possível desenvolver uma comunhão nas
diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas magnânimas que têm a
coragem de ultrapassar a superfície conflitual e consideram os outros na
sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário postular um
princípio que é indispensável para construir a amizade social: a unidade
é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no seu sentido mais
profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da
história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos
podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é
apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução
num plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das
polaridades em contraste.
229. Este critério evangélico recorda-nos que Cristo tudo unificou
em Si: céu e terra, Deus e homem, tempo e eternidade, carne e espírito,
pessoa e sociedade. O sinal distintivo desta unidade e reconciliação de
tudo n’Ele é a paz. Cristo «é a nossa paz» (Ef 2, 14). O anúncio
do Evangelho começa sempre com a saudação de paz; e a paz coroa e
cimenta em cada momento as relações entre os discípulos. A paz é
possível, porque o Senhor venceu o mundo e sua permanente
conflitualidade, «pacificando pelo sangue da sua cruz» (Col 1,
20). Entretanto, se examinarmos a fundo estes textos bíblicos,
descobriremos que o primeiro âmbito onde somos chamados a conquistar
esta pacificação nas diferenças é a própria interioridade, a própria
vida sempre ameaçada pela dispersão dialéctica.[183] Com corações despedaçados em milhares de fragmentos, será difícil construir uma verdadeira paz social.
230. O anúncio de paz não é a proclamação duma paz negociada, mas a
convicção de que a unidade do Espírito harmoniza todas as diversidades.
Supera qualquer conflito numa nova e promissora síntese. A diversidade é
bela, quando aceita entrar constantemente num processo de reconciliação
até selar uma espécie de pacto cultural que faça surgir uma
«diversidade reconciliada», como justamente ensinaram os Bispos da
República Democrática do Congo: «A diversidade das nossas etnias é uma
riqueza. (…) Só com a unidade, a conversão dos corações e a
reconciliação é que poderemos fazer avançar o nosso país».[184]
231. Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade:
a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve
estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por
separar-se da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da
imagem, do sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio: a
realidade é superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar
a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os
nominalismos declaracionistas, os projectos mais formais que reais, os
fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os
intelectualismos sem sabedoria.
232. A ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço da
captação, compreensão e condução da realidade. A ideia desligada da
realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes que, no
máximo, classificam ou definem, mas não empenham. O que empenha é a
realidade iluminada pelo raciocínio. É preciso passar do nominalismo
formal à objectividade harmoniosa. Caso contrário, manipula-se a
verdade, do mesmo modo que se substitui a ginástica pela cosmética.[185]
Há políticos – e também líderes religiosos – que se interrogam por que
motivo o povo não os compreende nem segue, se as suas propostas são tão
lógicas e claras. Possivelmente é porque se instalaram no reino das
puras ideias e reduziram a política ou a fé à retórica; outros
esqueceram a simplicidade e importaram de fora uma racionalidade alheia à
gente.
233. A realidade é superior à ideia. Este critério está ligado à
encarnação da Palavra e ao seu cumprimento: «Reconheceis que o espírito é
de Deus por isto: todo o espírito que confessa Jesus Cristo que veio em
carne mortal é de Deus» (1 Jo 4, 2). O critério da realidade,
duma Palavra já encarnada e sempre procurando encarnar-se, é essencial à
evangelização. Por um lado, leva-nos a valorizar a história da Igreja
como história de salvação, a recordar os nossos Santos que inculturaram o
Evangelho na vida dos nossos povos, a recolher a rica tradição
bimilenária da Igreja, sem pretender elaborar um pensamento desligado
deste tesouro como se quiséssemos inventar o Evangelho. Por outro lado,
este critério impele-nos a pôr em prática a Palavra, a realizar obras de
justiça e caridade nas quais se torne fecunda esta Palavra. Não pôr em
prática, não levar à realidade a Palavra é construir sobre a areia,
permanecer na pura ideia e degenerar em intimismos e gnosticismos que
não dão fruto, que esterilizam o seu dinamismo.
234. Entre a globalização e a localização também se gera uma
tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair numa
mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o
que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra. As duas coisas
unidas impedem de cair em algum destes dois extremos: o primeiro, que os
cidadãos vivam num universalismo abstracto e globalizante, miméticos
passageiros do carro de apoio, admirando os fogos de artifício do mundo,
que é de outros, com a boca aberta e aplausos programados; o outro
extremo é que se transformem num museu folclórico de eremitas
localistas, condenados a repetir sempre as mesmas coisas, incapazes de
se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que Deus
espalha fora das suas fronteiras.
235. O todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a
simples soma delas. Portanto, não se deve viver demasiado obcecado por
questões limitadas e particulares. É preciso alargar sempre o olhar para
reconhecer um bem maior que trará benefícios a todos nós. Mas há que o
fazer sem se evadir nem se desenraizar. É necessário mergulhar as raízes
na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus.
Trabalha-se no pequeno, no que está próximo, mas com uma perspectiva
mais ampla. Da mesma forma, uma pessoa que conserva a sua peculiaridade
pessoal e não esconde a sua identidade, quando se integra cordialmente
numa comunidade não se aniquila, mas recebe sempre novos estímulos para o
seu próprio desenvolvimento. Não é a esfera global que aniquila, nem a
parte isolada que esteriliza.
236. Aqui o modelo não é a esfera, pois não é superior às partes
e, nela, cada ponto é equidistante do centro, não havendo diferenças
entre um ponto e o outro. O modelo é o poliedro, que reflecte a
confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade.
Tanto a acção pastoral como a acção política procuram reunir nesse
poliedro o melhor de cada um. Ali entram os pobres com a sua cultura, os
seus projectos e as suas próprias potencialidades. Até mesmo as pessoas
que possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a oferecer que não
se deve perder. É a união dos povos, que, na ordem universal, conservam
a sua própria peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa sociedade
que procura um bem comum que verdadeiramente incorpore a todos.
237. A nós, cristãos, este princípio fala-nos também da totalidade
ou integridade do Evangelho que a Igreja nos transmite e envia a
pregar. A sua riqueza plena incorpora académicos e operários,
empresários e artistas, incorpora todos. A «mística popular» acolhe, a
seu modo, o Evangelho inteiro e encarna-o em expressões de oração, de
fraternidade, de justiça, de luta e de festa. A Boa Nova é a alegria dum
Pai que não quer que se perca nenhum dos seus pequeninos. Assim nasce a
alegria no Bom Pastor que encontra a ovelha perdida e a reintegra no
seu rebanho. O Evangelho é fermento que leveda toda a massa e cidade que
brilha no cimo do monte, iluminando todos os povos. O Evangelho possui
um critério de totalidade que lhe é intrínseco: não cessa de ser Boa
Nova enquanto não for anunciado a todos, enquanto não fecundar e curar
todas as dimensões do homem, enquanto não unir todos os homens à volta
da mesa do Reino. O todo é superior à parte.
238. A evangelização implica também um caminho de diálogo. Neste
momento, existem sobretudo três campos de diálogo onde a Igreja deve
estar presente, cumprindo um serviço a favor do pleno desenvolvimento do
ser humano e procurando o bem comum: o diálogo com os Estados, com a
sociedade – que inclui o diálogo com as culturas e as ciências – e com
os outros crentes que não fazem parte da Igreja Católica. Em todos os
casos, «a Igreja fala a partir da luz que a fé lhe dá»,[186]
oferece a sua experiência de dois mil anos e conserva sempre na memória
as vidas e sofrimentos dos seres humanos. Isto ultrapassa a razão
humana, mas também tem um significado que pode enriquecer a quantos não
crêem e convida a razão a alargar as suas perspectivas.
239. A Igreja proclama o «evangelho da paz» (Ef 6, 15) e
está aberta à colaboração com todas as autoridades nacionais e
internacionais para cuidar deste bem universal tão grande. Ao anunciar
Jesus Cristo, que é a paz em pessoa (cf. Ef 2, 14), a nova
evangelização incentiva todo o baptizado a ser instrumento de
pacificação e testemunha credível duma vida reconciliada.[187]
É hora de saber como projectar, numa cultura que privilegie o diálogo
como forma de encontro, a busca de consenso e de acordos mas sem a
separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e sem
exclusões. O autor principal, o sujeito histórico deste processo, é a
gente e a sua cultura, não uma classe, uma fracção, um grupo, uma elite.
Não precisamos de um projecto de poucos para poucos, ou de uma minoria
esclarecida ou testemunhal que se aproprie de um sentimento colectivo.
Trata-se de um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural.
240. O cuidado e a promoção do bem comum da sociedade compete ao Estado.[188]
Este, com base nos princípios de subsidiariedade e solidariedade e com
um grande esforço de diálogo político e criação de consensos, desempenha
um papel fundamental – que não pode ser delegado – na busca do
desenvolvimento integral de todos. Este papel exige, nas circunstâncias
actuais, uma profunda humildade social.
241. No diálogo com o Estado e com a sociedade, a Igreja não tem
soluções para todas as questões específicas. Mas, juntamente com as
várias forças sociais, acompanha as propostas que melhor correspondam à
dignidade da pessoa humana e ao bem comum. Ao fazê-lo, propõe sempre com
clareza os valores fundamentais da existência humana, para transmitir
convicções que possam depois traduzir-se em acções políticas.
242. O diálogo entre ciência e fé também faz parte da acção evangelizadora que favorece a paz.[189]
O cientificismo e o positivismo recusam-se a «admitir, como válidas,
formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências
positivas».[190]
A Igreja propõe outro caminho, que exige uma síntese entre um uso
responsável das metodologias próprias das ciências empíricas e os outros
saberes como a filosofia, a teologia, e a própria fé que eleva o ser
humano até ao mistério que transcende a natureza e a inteligência
humana. A fé não tem medo da razão; pelo contrário, procura-a e tem
confiança nela, porque «a luz da razão e a luz da fé provêm ambas de
Deus»,[191]
e não se podem contradizer entre si. A evangelização está atenta aos
progressos científicos para os iluminar com a luz da fé e da lei
natural, tendo em vista procurar que sempre respeitem a centralidade e o
valor supremo da pessoa humana em todas as fases da sua existência.
Toda a sociedade pode ser enriquecida através deste diálogo que abre
novos horizontes ao pensamento e amplia as possibilidades da razão.
Também este é um caminho de harmonia e pacificação.
243. A Igreja não pretende deter o progresso admirável das
ciências. Pelo contrário, alegra-se e inclusivamente desfruta
reconhecendo o enorme potencial que Deus deu à mente humana. Quando o
progresso das ciências, mantendo-se com rigor académico no campo do seu
objecto específico, torna evidente uma determinada conclusão que a razão
não pode negar, a fé não a contradiz. Nem os crentes podem pretender
que uma opinião científica que lhes agrada – e que nem sequer foi
suficientemente comprovada – adquira o peso dum dogma de fé. Em certas
ocasiões, porém, alguns cientistas vão mais além do objecto formal da
sua disciplina e exageram com afirmações ou conclusões que extravasam o
campo da própria ciência. Neste caso, não é a razão que se propõe, mas
uma determinada ideologia que fecha o caminho a um diálogo autêntico,
pacífico e frutuoso.
244. O compromisso ecuménico corresponde à oração do Senhor Jesus pedindo «que todos sejam um só» (Jo
17, 21). A credibilidade do anúncio cristão seria muito maior, se os
cristãos superassem as suas divisões e a Igreja realizasse «a plenitude
da catolicidade que lhe é própria naqueles filhos que, embora
incorporados pelo Baptismo, estão separados da sua plena comunhão».[192]
Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos, e peregrinamos
juntos. Para isso, devemos abrir o coração ao companheiro de estrada sem
medos nem desconfianças, e olhar primariamente para o que procuramos: a
paz no rosto do único Deus. O abrir-se ao outro tem algo de artesanal, a
paz é artesanal. Jesus disse-nos: «Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9). Neste esforço, mesmo entre nós, cumpre-se a antiga profecia: «Transformarão as suas espadas em relhas de arado» (Is 2, 4).
245. Sob esta luz, o ecumenismo é uma contribuição para a unidade
da família humana. A presença no Sínodo do Patriarca de Constantinopla,
Sua Santidade Bartolomeu I, e do Arcebispo de Cantuária, Sua Graça Rowan
Douglas Williams,[193] foi um verdadeiro dom de Deus e um precioso testemunho cristão.
246. Dada a gravidade do contra-testemunho da divisão entre
cristãos, sobretudo na Ásia e na África, torna-se urgente a busca de
caminhos de unidade. Os missionários, nesses continentes, referem
repetidamente as críticas, queixas e sarcasmos que recebem por causa do
escândalo dos cristãos divididos. Se nos concentrarmos nas convicções
que nos unem e recordarmos o princípio da hierarquia das verdades,
poderemos caminhar decididamente para formas comuns de anúncio, de
serviço e de testemunho. A imensa multidão que não recebeu o anúncio de
Jesus Cristo não pode deixar-nos indiferentes. Por isso, o esforço por
uma unidade que facilite a recepção de Jesus Cristo deixa de ser mera
diplomacia ou um dever forçado para se transformar num caminho
imprescindível da evangelização. Os sinais de divisão entre cristãos, em
países que já estão dilacerados pela violência, juntam outros motivos
de conflito vindos da parte de quem deveria ser um activo fermento de
paz. São tantas e tão valiosas as coisas que nos unem! E, se realmente
acreditamos na acção livre e generosa do Espírito, quantas coisas
podemos aprender uns dos outros! Não se trata apenas de receber
informações sobre os outros para os conhecermos melhor, mas de recolher o
que o Espírito semeou neles como um dom também para nós. Só para dar um
exemplo, no diálogo com os irmãos ortodoxos, nós, os católicos, temos a
possibilidade de aprender algo mais sobre o significado da
colegialidade episcopal e sobre a sua experiência da sinodalidade.
Através dum intercâmbio de dons, o Espírito pode conduzir-nos cada vez
mais para a verdade e o bem.
247. Um olhar muito especial é dirigido ao povo judeu, cuja
Aliança com Deus nunca foi revogada, porque «os dons e o chamamento de
Deus são irrevogáveis» (Rm 11, 29). A Igreja, que partilha com o
Judaísmo uma parte importante das Escrituras Sagradas, considera o povo
da Aliança e a sua fé como uma raiz sagrada da própria identidade cristã
(cf. Rm 11, 16-18). Como cristãos, não podemos considerar o
Judaísmo como uma religião alheia, nem incluímos os judeus entre quantos
são chamados a deixar os ídolos para se converter ao verdadeiro Deus
(cf. 1 Ts 1, 9). Juntamente com eles, acreditamos no único Deus que actua na história, e acolhemos, com eles, a Palavra revelada comum.
248. O diálogo e a amizade com os filhos de Israel fazem parte da
vida dos discípulos de Jesus. O afecto que se desenvolveu leva-nos a
lamentar, sincera e amargamente, as terríveis perseguições de que foram e
são objecto, particularmente aquelas que envolvem ou envolveram
cristãos.
249. Deus continua a operar no povo da Primeira Aliança e faz
nascer tesouros de sabedoria que brotam do seu encontro com a Palavra
divina. Por isso, a Igreja também se enriquece quando recolhe os valores
do Judaísmo. Embora algumas convicções cristãs sejam inaceitáveis para o
Judaísmo e a Igreja não possa deixar de anunciar Jesus como Senhor e
Messias, há uma rica complementaridade que nos permite ler juntos os
textos da Bíblia hebraica e ajudar-nos mutuamente a desentranhar as
riquezas da Palavra, bem como compartilhar muitas convicções éticas e a
preocupação comum pela justiça e o desenvolvimento dos povos.
250. Uma atitude de abertura na verdade e no amor deve
caracterizar o diálogo com os crentes das religiões não-cristãs, apesar
dos vários obstáculos e dificuldades, de modo particular os
fundamentalismos de ambos os lados. Este diálogo inter-religioso é uma
condição necessária para a paz no mundo e, por conseguinte, é um dever
para os cristãos e também para outras comunidades religiosas. Este
diálogo é, em primeiro lugar, uma conversa sobre a vida humana ou
simplesmente – como propõem os Bispos da Índia – «estar aberto a eles,
compartilhando as suas alegrias e penas».[194]
Assim aprendemos a aceitar os outros, na sua maneira diferente de ser,
de pensar e de se exprimir. Com este método, poderemos assumir juntos o
dever de servir a justiça e a paz, que deverá tornar-se um critério
básico de todo o intercâmbio. Um diálogo, no qual se procurem a paz e a
justiça social, é em si mesmo, para além do aspecto meramente
pragmático, um compromisso ético que cria novas condições sociais. Os
esforços à volta dum tema específico podem transformar-se num processo
em que, através da escuta do outro, ambas as partes encontram
purificação e enriquecimento. Portanto, estes esforços também podem ter o
significado de amor à verdade.
251. Neste diálogo, sempre amável e cordial, nunca se deve
descuidar o vínculo essencial entre diálogo e anúncio, que leva a Igreja
a manter e intensificar as relações com os não-cristãos.[195]
Um sincretismo conciliador seria, no fundo, um totalitarismo de quantos
pretendem conciliar prescindindo de valores que os transcendem e dos
quais não são donos. A verdadeira abertura implica conservar-se firme
nas próprias convicções mais profundas, com uma identidade clara e
feliz, mas «disponível para compreender as do outro» e «sabendo que o
diálogo pode enriquecer a ambos».[196]
Não nos serve uma abertura diplomática que diga sim a tudo para evitar
problemas, porque seria um modo de enganar o outro e negar-lhe o bem que
se recebeu como um dom para partilhar com generosidade. Longe de se
contraporem, a evangelização e o diálogo inter-religioso apoiam-se e
alimentam-se reciprocamente.[197]
252. Neste tempo, adquire grande importância a relação com os
crentes do Islão, hoje particularmente presentes em muitos países de
tradição cristã, onde podem celebrar livremente o seu culto e viver
integrados na sociedade. Não se deve jamais esquecer que eles «professam
seguir a fé de Abraão, e connosco adoram o Deus único e misericordioso,
que há-de julgar os homens no último dia».[198]
Os escritos sagrados do Islão conservam parte dos ensinamentos
cristãos; Jesus Cristo e Maria são objecto de profunda veneração e é
admirável ver como jovens e idosos, mulheres e homens do Islão são
capazes de dedicar diariamente tempo à oração e participar fielmente nos
seus ritos religiosos. Ao mesmo tempo, muitos deles têm uma profunda
convicção de que a própria vida, na sua totalidade, é de Deus e para
Deus. Reconhecem também a necessidade de Lhe responder com um
compromisso ético e com a misericórdia para com os mais pobres.
253. Para sustentar o diálogo com o Islão é indispensável a
adequada formação dos interlocutores, não só para que estejam sólida e
jubilosamente radicados na sua identidade, mas também para que sejam
capazes de reconhecer os valores dos outros, compreender as preocupações
que subjazem às suas reivindicações e fazer aparecer as convicções
comuns. Nós, cristãos, deveríamos acolher com afecto e respeito os
imigrantes do Islão que chegam aos nossos países, tal como esperamos e
pedimos para ser acolhidos e respeitados nos países de tradição
islâmica. Rogo, imploro humildemente a esses países que assegurem
liberdade aos cristãos para poderem celebrar o seu culto e viver a sua
fé, tendo em conta a liberdade que os crentes do Islão gozam nos países
ocidentais. Frente a episódios de fundamentalismo violento que nos
preocupam, o afecto pelos verdadeiros crentes do Islão deve levar-nos a
evitar odiosas generalizações, porque o verdadeiro Islão e uma
interpretação adequada do Alcorão opõem-se a toda a violência.
254. Os não-cristãos fiéis à sua consciência podem, por gratuita
iniciativa divina, viver «justificados por meio da graça de Deus»[199] e, assim, «associados ao mistério pascal de Jesus Cristo».[200]
Devido, porém, à dimensão sacramental da graça santificante, a acção
divina neles tende a produzir sinais, ritos, expressões sagradas que,
por sua vez, envolvem outros numa experiência comunitária do caminho
para Deus.[201]
Não têm o significado e a eficácia dos Sacramentos instituídos por
Cristo, mas podem ser canais que o próprio Espírito suscita para
libertar os não-cristãos do imanentismo ateu ou de experiências
religiosas meramente individuais. O mesmo Espírito suscita por toda a
parte diferentes formas de sabedoria prática que ajudam a suportar as
carências da vida e a viver com mais paz e harmonia. Nós, cristãos,
podemos tirar proveito também desta riqueza consolidada ao longo dos
séculos, que nos pode ajudar a viver melhor as nossas próprias
convicções.
255. Os Padres sinodais lembraram a importância do respeito pela liberdade religiosa, considerada um direito humano fundamental.[202] Inclui «a liberdade de escolher a religião que se crê ser verdadeira e de manifestar publicamente a própria crença».[203]
Um são pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que pensam
diferente e os valorizem como tais, não implica uma privatização das
religiões, com a pretensão de as reduzir ao silêncio e à obscuridade da
consciência de cada um ou à sua marginalização no recinto fechado das
igrejas, sinagogas ou mesquitas. Tratar-se-ia, em definitivo, de uma
nova forma de discriminação e autoritarismo. O respeito devido às
minorias de agnósticos ou de não-crentes não se deve impor de maneira
arbitrária que silencie as convicções de maiorias crentes ou ignore a
riqueza das tradições religiosas. No fundo, isso fomentaria mais o
ressentimento do que a tolerância e a paz.
256. Ao questionar-se sobre a incidência pública da religião, é
preciso distinguir diferentes modos de a viver. Tanto os intelectuais
como os jornalistas caem, frequentemente, em generalizações grosseiras e
pouco académicas, quando falam dos defeitos das religiões e, muitas
vezes, não são capazes de distinguir que nem todos os crentes – nem
todos os líderes religiosos – são iguais. Alguns políticos aproveitam
esta confusão para justificar acções discriminatórias. Outras vezes,
desprezam-se os escritos que surgiram no âmbito duma convicção crente,
esquecendo que os textos religiosos clássicos podem oferecer um
significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora que abre
sempre novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece a mente e a
sensibilidade. São desprezados pela miopia dos racionalismos. Será
razoável e inteligente relegá-los para a obscuridade, só porque nasceram
no contexto duma crença religiosa? Contêm princípios profundamente
humanistas que possuem um valor racional, apesar de estarem permeados de
símbolos e doutrinas religiosos.
257. Como crentes, sentimo-nos próximo também de todos aqueles
que, não se reconhecendo parte de qualquer tradição religiosa, buscam
sinceramente a verdade, a bondade e a beleza, que, para nós, têm a sua
máxima expressão e a sua fonte em Deus. Sentimo-los como preciosos
aliados no compromisso pela defesa da dignidade humana, na construção
duma convivência pacífica entre os povos e na guarda da criação. Um
espaço peculiar é o dos chamados novos Areópagos, como o «Átrio
dos Gentios», onde «crentes e não-crentes podem dialogar sobre os temas
fundamentais da ética, da arte e da ciência, e sobre a busca da
transcendência».[204] Também este é um caminho de paz para o nosso mundo ferido.
258. A partir de alguns temas sociais, importantes para o futuro
da humanidade, procurei explicitar uma vez mais a incontornável dimensão
social do anúncio do Evangelho, para encorajar todos os cristãos a
manifestá-la sempre nas suas palavras, atitudes e acções.
259. Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que
se abrem sem medo à acção do Espírito Santo. No Pentecostes, o Espírito
faz os Apóstolos saírem de si mesmos e transforma-os em anunciadores das
maravilhas de Deus, que cada um começa a entender na própria língua.
Além disso, o Espírito Santo infunde a força para anunciar a novidade do
Evangelho com ousadia (parresia), em voz alta e em todo o tempo e
lugar, mesmo contra-corrente. Invoquemo-Lo hoje, bem apoiados na
oração, sem a qual toda a acção corre o risco de ficar vã e o anúncio,
no fim de contas, carece de alma. Jesus quer evangelizadores que
anunciem a Boa Nova, não só com palavras mas sobretudo com uma vida
transfigurada pela presença de Deus.
260. Neste último capítulo, não vou oferecer uma síntese da
espiritualidade cristã, nem desenvolverei grandes temas como a oração, a
adoração eucarística ou a celebração da fé, sobre os quais já possuímos
preciosos textos do Magistério e escritos célebres de grandes autores.
Não pretendo substituir nem superar tanta riqueza. Limitar-me-ei
simplesmente a propor algumas reflexões acerca do espírito da nova
evangelização.
261. Quando se diz de uma realidade que tem «espírito», indica-se
habitualmente uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá
sentido à acção pessoal e comunitária. Uma evangelização com espírito é
muito diferente de um conjunto de tarefas vividas como uma obrigação
pesada, que quase não se tolera ou se suporta como algo que contradiz as
nossas próprias inclinações e desejos. Como gostaria de encontrar
palavras para encorajar uma estação evangelizadora mais ardorosa,
alegre, generosa, ousada, cheia de amor até ao fim e feita de vida
contagiante! Mas sei que nenhuma motivação será suficiente, se não arde
nos corações o fogo do Espírito. Em suma, uma evangelização com espírito
é uma evangelização com o Espírito Santo, já que Ele é a alma da Igreja
evangelizadora. Antes de propor algumas motivações e sugestões
espirituais, invoco uma vez mais o Espírito Santo; peço-Lhe que venha
renovar, sacudir, impelir a Igreja numa decidida saída para fora de si
mesma a fim de evangelizar todos os povos.
262.Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que
rezam e trabalham. Do ponto de vista da evangelização, não servem as
propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e
missionário, nem os discursos e acções sociais e pastorais sem uma
espiritualidade que transforme o coração. Estas propostas parciais e
desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força de ampla
penetração, porque mutilam o Evangelho. É preciso cultivar sempre um
espaço interior que dê sentido cristão ao compromisso e à actividade.[205]
Sem momentos prolongados de adoração, de encontro orante com a Palavra,
de diálogo sincero com o Senhor, as tarefas facilmente se esvaziam de
significado, quebrantamo-nos com o cansaço e as dificuldades, e o ardor
apaga-se. A Igreja não pode dispensar o pulmão da oração, e alegra-me
imenso que se multipliquem, em todas as instituições eclesiais, os
grupos de oração, de intercessão, de leitura orante da Palavra, as
adorações perpétuas da Eucaristia. Ao mesmo tempo, «há que rejeitar a
tentação duma espiritualidade intimista e individualista, que
dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da
encarnação».[206]
Há o risco de que alguns momentos de oração se tornem uma desculpa para
evitar de dedicar a vida à missão, porque a privatização do estilo de
vida pode levar os cristãos a refugiarem-se nalguma falsa
espiritualidade.
263. É salutar recordar-se dos primeiros cristãos e de tantos
irmãos ao longo da história que se mantiveram transbordantes de alegria,
cheios de coragem, incansáveis no anúncio e capazes de uma grande
resistência activa. Há quem se console, dizendo que hoje é mais difícil;
temos, porém, de reconhecer que o contexto do Império Romano não era
favorável ao anúncio do Evangelho, nem à luta pela justiça, nem à defesa
da dignidade humana. Em cada momento da história, estão presentes a
fraqueza humana, a busca doentia de si mesmo, a comodidade egoísta e,
enfim, a concupiscência que nos ameaça a todos. Isto está sempre
presente, sob uma roupagem ou outra; deriva mais da limitação humana que
das circunstâncias. Por isso, não digamos que hoje é mais difícil; é
diferente. Em vez disso, aprendamos com os Santos que nos precederam e
enfrentaram as dificuldades próprias do seu tempo. Com esta finalidade,
proponho-vos que nos detenhamos a recuperar algumas motivações que nos
ajudem a imitá-los nos nossos dias.[207]
264. A primeira motivação para evangelizar é o amor que recebemos
de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por Ele que nos impele a
amá-Lo cada vez mais. Com efeito, um amor que não sentisse a necessidade
de falar da pessoa amada, de a apresentar, de a tornar conhecida, que
amor seria? Se não sentimos o desejo intenso de comunicar Jesus,
precisamos de nos deter em oração para Lhe pedir que volte a
cativar-nos. Precisamos de o implorar cada dia, pedir a sua graça para
que abra o nosso coração frio e sacuda a nossa vida tíbia e superficial.
Colocados diante d’Ele com o coração aberto, deixando que Ele nos olhe,
reconhecemos aquele olhar de amor que descobriu Natanael no dia em que
Jesus Se fez presente e lhe disse: «Eu vi-te, quando estavas debaixo da
figueira!» (Jo 1, 48). Como é doce permanecer diante dum
crucifixo ou de joelhos diante do Santíssimo Sacramento, e fazê-lo
simplesmente para estar à frente dos seus olhos! Como nos faz bem deixar
que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie para comunicar a sua
vida nova! Sucede então que, em última análise, «o que nós vimos e
ouvimos, isso anunciamos» (1 Jo 1, 3). A melhor motivação para se
decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo com amor, é deter-se nas
suas páginas e lê-lo com o coração. Se o abordamos desta maneira, a sua
beleza deslumbra-nos, volta a cativar-nos vezes sem conta. Por isso, é
urgente recuperar um espírito contemplativo, que nos permita
redescobrir, cada dia, que somos depositários dum bem que humaniza, que
ajuda a levar uma vida nova. Não há nada de melhor para transmitir aos
outros.
265. Toda a vida de Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os
seus gestos, a sua coerência, a sua generosidade simples e quotidiana e,
finalmente, a sua total dedicação, tudo é precioso e fala à nossa vida
pessoal. Todas as vezes que alguém volta a descobri-lo, convence-se de
que é isso mesmo o que os outros precisam, embora não o saibam: «Aquele
que venerais sem O conhecer, é Esse que eu vos anuncio» (Act 17, 23). Às vezes perdemos o entusiasmo pela missão, porque esquecemos que o Evangelho dá resposta às necessidades mais profundas
das pessoas, porque todos fomos criados para aquilo que o Evangelho nos
propõe: a amizade com Jesus e o amor fraterno. Quando se consegue
exprimir, de forma adequada e bela, o conteúdo essencial do Evangelho,
de certeza que essa mensagem fala aos anseios mais profundos do coração:
«O missionário está convencido de que existe já, nas pessoas e nos
povos, pela acção do Espírito, uma ânsia – mesmo se inconsciente – de
conhecer a verdade acerca de Deus, do homem, do caminho que conduz à
liberação do pecado e da morte. O entusiasmo posto no anúncio de Cristo
deriva da convicção de responder a tal ânsia».[208]
O entusiasmo na evangelização funda-se
nesta convicção. Temos à disposição um tesouro de vida e de amor que não
pode enganar, a mensagem que não pode manipular nem desiludir. É uma
resposta que desce ao mais fundo do ser humano e pode sustentá-lo e
elevá-lo. É a verdade que não passa de moda, porque é capaz de penetrar
onde nada mais pode chegar. A nossa tristeza infinita só se cura com um
amor infinito.
266. Esta convicção, porém, é sustentada com a experiência
pessoal, constantemente renovada, de saborear a sua amizade e a sua
mensagem. Não se pode perseverar numa evangelização cheia de ardor, se
não se está convencido, por experiência própria, que não é a mesma coisa
ter conhecido Jesus ou não O conhecer, não é a mesma coisa caminhar com
Ele ou caminhar tacteando, não é a mesma coisa poder escutá-Lo ou
ignorar a sua Palavra, não é a mesma coisa poder contemplá-Lo, adorá-Lo,
descansar n’Ele ou não o poder fazer. Não é a mesma coisa procurar
construir o mundo com o seu Evangelho em vez de o fazer unicamente com a
própria razão. Sabemos bem que a vida com Jesus se torna muito mais
plena e, com Ele, é mais fácil encontrar o sentido para cada coisa. É
por isso que evangelizamos. O verdadeiro missionário, que não deixa
jamais de ser discípulo, sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele,
respira com ele, trabalha com ele. Sente Jesus vivo com ele, no meio da
tarefa missionária. Se uma pessoa não O descobre presente no coração
mesmo da entrega missionária, depressa perde o entusiasmo e deixa de
estar segura do que transmite, faltam-lhe força e paixão. E uma pessoa
que não está convencida, entusiasmada, segura, enamorada, não convence
ninguém.
267. Unidos a Jesus, procuramos o que Ele procura, amamos o que
Ele ama. Em última instância, o que procuramos é a glória do Pai,
vivemos e agimos «para que seja prestado louvor à glória da sua graça» (Ef
1, 6). Se queremos entregar-nos a sério e com perseverança, esta
motivação deve superar toda e qualquer outra. O movente definitivo, o
mais profundo, o maior, a razão e o sentido último de tudo o resto é
este: a glória do Pai que Jesus procurou durante toda a sua existência.
Ele é o Filho eternamente feliz, com todo o seu ser «no seio do Pai» (Jo
1, 18). Se somos missionários, antes de tudo é porque Jesus nos disse:
«A glória do meu Pai [consiste] em que deis muito fruto» (Jo 15,
8). Independentemente de que nos convenha, interesse, aproveite ou não,
para além dos estreitos limites dos nossos desejos, da nossa compreensão
e das nossas motivações, evangelizamos para a maior glória do Pai que
nos ama.
268. A Palavra de Deus convida-nos também a reconhecer que somos
povo: «Vós que outrora não éreis um povo, agora sois povo de Deus» (1 Pd
2, 10). Para ser evangelizadores com espírito é preciso também
desenvolver o prazer espiritual de estar próximo da vida das pessoas,
até chegar a descobrir que isto se torna fonte duma alegria superior. A
missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma paixão pelo seu
povo. Quando paramos diante de Jesus crucificado, reconhecemos todo o
seu amor que nos dignifica e sustenta, mas lá também, se não formos
cegos, começamos a perceber que este olhar de Jesus se alonga e dirige,
cheio de afecto e ardor, a todo o seu povo. Lá descobrimos novamente que
Ele quer servir-Se de nós para chegar cada vez mais perto do seu povo
amado. Toma-nos do meio do povo e envia-nos ao povo, de tal modo que a
nossa identidade não se compreende sem esta pertença.
269. O próprio Jesus é o modelo desta opção evangelizadora que nos
introduz no coração do povo. Como nos faz bem vê-Lo perto de todos! Se
falava com alguém, fitava os seus olhos com uma profunda solicitude
cheia de amor: «Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo disponível ao encontro, quando manda aproximar-se o cego do caminho (cf. Mc 10, 46-52) e quando come e bebe com os pecadores (cf. Mc 2, 16), sem Se importar que O chamem de glutão e beberrão (cf. Mt 11, 19). Vemo-Lo disponível, quando deixa uma prostituta ungir-Lhe os pés (cf. Lc 7, 36-50) ou quando recebe, de noite, Nicodemos (cf. Jo
3, 1-15). A entrega de Jesus na cruz é apenas o culminar deste estilo
que marcou toda a sua vida. Fascinados por este modelo, queremos
inserir-nos a fundo na sociedade, partilhamos a vida com todos, ouvimos
as suas preocupações, colaboramos material e espiritualmente nas suas
necessidades, alegramo-nos com os que estão alegres, choramos com os que
choram e comprometemo-nos na construção de um mundo novo, lado a lado
com os outros. Mas não como uma obrigação, nem como um peso que nos
desgasta, mas como uma opção pessoal que nos enche de alegria e nos dá
uma identidade.
270. Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma
prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a
miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros. Espera que
renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que
permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de
aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida concreta dos
outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida
complica-se sempre maravilhosamente e vivemos a intensa experiência de
ser povo, a experiência de pertencer a um povo.
271. É verdade que, na nossa relação com o mundo, somos convidados
a dar razão da nossa esperança, mas não como inimigos que apontam o
dedo e condenam. A advertência é muito clara: fazei-o «com mansidão e
respeito» (1 Pd 3, 16) e «tanto quanto for possível e de vós dependa, vivei em paz com todos os homens» (Rm 12, 18). E somos incentivados também a vencer «o mal com o bem» (Rm 12, 21), sem nos cansarmos de «fazer o bem» (Gal 6, 9) e sem pretendermos aparecer como superiores, antes «considerai os outros superiores a vós próprios» (Fl 2, 3). Na realidade, os Apóstolos do Senhor «tinham a simpatia de todo o povo» (Act
2, 47; cf. 4, 21.33; 5, 13). Está claro que Jesus não nos quer como
príncipes que olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo.
Esta não é a opinião de um Papa, nem uma opção pastoral entre várias
possíveis; são indicações da Palavra de Deus tão claras, directas e
contundentes, que não precisam de interpretações que as despojariam da
sua força interpeladora. Vivamo-las sine glossa, sem comentários.
Assim, experimentaremos a alegria missionária de partilhar a vida com o
povo fiel de Deus, procurando acender o fogo no coração do mundo.
272. O amor às pessoas é uma força espiritual que favorece o
encontro em plenitude com Deus, a ponto de se dizer, de quem não ama o
irmão, que «está nas trevas e nas trevas caminha» (1 Jo 2, 11), «permanece na morte» (1 Jo 3, 14) e «não chegou a conhecer a Deus» (1 Jo 4, 8). Bento XVI disse que «fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus»,[209] e que o amor é fundamentalmente a única luz que «ilumina incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir».[210]
Portanto, quando vivemos a mística de nos aproximar dos outros com a
intenção de procurar o seu bem, ampliamos o nosso interior para receber
os mais belos dons do Senhor. Cada vez que nos encontramos com um ser
humano no amor, ficamos capazes de descobrir algo de novo sobre Deus.
Cada vez que os nossos olhos se abrem para reconhecer o outro,
ilumina-se mais a nossa fé para reconhecer a Deus. Em consequência
disto, se queremos crescer na vida espiritual, não podemos renunciar a
ser missionários. A tarefa da evangelização enriquece a mente e o
coração, abre-nos horizontes espirituais, torna-nos mais sensíveis para
reconhecer a acção do Espírito, faz-nos sair dos nossos esquemas
espirituais limitados. Ao mesmo tempo, um missionário plenamente
devotado ao seu trabalho experimenta o prazer de ser um manancial que
transborda e refresca os outros. Só pode ser missionário quem se sente
bem, procurando o bem do próximo, desejando a felicidade dos outros.
Esta abertura do coração é fonte de felicidade, porque «a felicidade
está mais em dar do que em receber» (Act 20, 35). Não se vive
melhor fugindo dos outros, escondendo-se, negando-se a partilhar,
resistindo a dar, fechando-se na comodidade. Isto não é senão um lento
suicídio.
273. A missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou
um ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento
entre tantos outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do meu
ser, se não me quero destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e
para isso estou neste mundo. É preciso considerarmo-nos como que
marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar,
levantar, curar, libertar. Nisto uma pessoa se revela enfermeira no
espírito, professor no espírito, político no espírito..., ou seja,
pessoas que decidiram, no mais íntimo de si mesmas, estar com os outros e
ser para os outros. Mas, se uma pessoa coloca a tarefa dum lado e a
vida privada do outro, tudo se torna cinzento e viverá continuamente à
procura de reconhecimentos ou defendendo as suas próprias exigências.
Deixará de ser povo.
274. Para partilhar a vida com a gente e dar-nos generosamente,
precisamos de reconhecer também que cada pessoa é digna da nossa
dedicação. E não pelo seu aspecto físico, suas capacidades, sua
linguagem, sua mentalidade ou pelas satisfações que nos pode dar, mas
porque é obra de Deus, criatura sua. Ele criou-a à sua imagem, e
reflecte algo da sua glória. Cada ser humano é objecto da ternura
infinita do Senhor, e Ele mesmo habita na sua vida. Na cruz, Jesus
Cristo deu o seu sangue precioso por essa pessoa. Independentemente da
aparência, cada um é imensamente sagrado e merece o nosso afecto e a nossa dedicação.
Por isso, se consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já
justifica o dom da minha vida. É maravilhoso ser povo fiel de Deus. E
ganhamos plenitude, quando derrubamos os muros e o coração se enche de
rostos e de nomes!
275. No segundo capítulo, reflectimos sobre a carência de
espiritualidade profunda que se traduz no pessimismo, no fatalismo, na
desconfiança. Algumas pessoas não se dedicam à missão, porque crêem que
nada pode mudar e assim, segundo elas, é inútil esforçar-se. Pensam:
«Para quê privar-me das minhas comodidades e prazeres, se não vejo algum
resultado importante?» Com esta mentalidade, torna-se impossível ser
missionário. Esta atitude é precisamente uma desculpa maligna para
continuar fechado na própria comodidade, na preguiça, na tristeza
insatisfeita, no vazio egoísta. Trata-se de uma atitude autodestrutiva,
porque «o homem não pode viver sem esperança: a sua vida, condenada à
insignificância, tornar-se-ia insuportável».[211]
No caso de pensarmos que as coisas não vão mudar, recordemos que Jesus
Cristo triunfou sobre o pecado e a morte e possui todo o poder. Jesus
Cristo vive verdadeiramente. Caso contrário, «se Cristo não ressuscitou,
é vã a nossa pregação» (1 Cor 15, 14). Diz-nos o Evangelho que,
quando os primeiros discípulos saíram a pregar, «o Senhor cooperava com
eles, confirmando a Palavra» (Mc 16, 20). E o mesmo acontece
hoje. Somos convidados a descobri-lo, a vivê-lo. Cristo ressuscitado e
glorioso é a fonte profunda da nossa esperança, e não nos faltará a sua
ajuda para cumprir a missão que nos confia.
276. A sua ressurreição não é algo do passado; contém uma força de
vida que penetrou o mundo. Onde parecia que tudo morreu, voltam a
aparecer por todo o lado os rebentos da ressurreição. É uma força sem
igual. É verdade que muitas vezes parece que Deus não existe: vemos
injustiças, maldades, indiferenças e crueldades que não cedem. Mas
também é certo que, no meio da obscuridade, sempre começa a desabrochar
algo de novo que, mais cedo ou mais tarde, produz fruto. Num campo
arrasado, volta a aparecer a vida, tenaz e invencível. Haverá muitas
coisas más, mas o bem sempre tende a reaparecer e espalhar-se. Cada dia,
no mundo, renasce a beleza, que ressuscita transformada através dos
dramas da história. Os valores tendem sempre a reaparecer sob novas
formas, e na realidade o ser humano renasceu muitas vezes de situações
que pareciam irreversíveis. Esta é a força da ressurreição, e cada
evangelizador é um instrumento deste dinamismo.
277. E continuamente aparecem também novas dificuldades, a
experiência do fracasso, as mesquinhices humanas que tanto ferem. Todos
sabemos, por experiência, que às vezes uma tarefa não nos dá as
satisfações que desejaríamos, os frutos são escassos e as mudanças são
lentas, e vem-nos a tentação de se dar por cansado. Todavia, não é a
mesma coisa quando alguém, por cansaço, baixa momentaneamente os braços e
quando os baixa definitivamente dominado por um descontentamento
crónico, por uma acédia que lhe mirra a alma. Pode acontecer que o
coração se canse de lutar, porque, em última análise, se busca a si
mesmo num carreirismo sedento de reconhecimentos, aplausos, prémios,
promoções; então a pessoa não baixa os braços, mas já não tem garra,
carece de ressurreição. Assim, o Evangelho, que é a mensagem mais bela
que há neste mundo, fica sepultado sob muitas desculpas.
278. A fé significa também acreditar n’Ele, acreditar que nos ama
verdadeiramente, que está vivo, que é capaz de intervir misteriosamente,
que não nos abandona, que tira bem do mal com o seu poder e a sua
criatividade infinita. Significa acreditar que Ele caminha vitorioso na
história «e, com Ele, estarão os chamados, os escolhidos, os fiéis» (Ap
17, 14). Acreditamos no Evangelho que diz que o Reino de Deus já está
presente no mundo, e vai-se desenvolvendo aqui e além de várias
maneiras: como a pequena semente que pode chegar a transformar-se numa
grande árvore (cf. Mt 13, 31-32), como o punhado de fermento que leveda uma grande massa (cf. Mt 13, 33), e como a boa semente que cresce no meio do joio (cf. Mt
13, 24-30) e sempre nos pode surpreender positivamente: ei-la que
aparece, vem outra vez, luta para florescer de novo. A ressurreição de
Cristo produz por toda a parte rebentos deste mundo novo; e, ainda que
os cortem, voltam a despontar, porque a ressurreição do Senhor já
penetrou a trama oculta desta história; porque Jesus não ressuscitou em
vão. Não fiquemos à margem desta marcha da esperança viva!
279. Como nem sempre vemos estes rebentos, precisamos de uma
certeza interior, ou seja, da convicção de que Deus pode actuar em
qualquer circunstância, mesmo no meio de aparentes fracassos, porque
«trazemos este tesouro em vasos de barro» (2 Cor 4, 7). Esta certeza é o que se chama «sentido de mistério», que consiste em saber, com certeza, que a pessoa que se oferece e entrega a Deus por amor, seguramente será fecunda (cf. Jo
15, 5). Muitas vezes esta fecundidade é invisível, incontrolável, não
pode ser contabilizada. A pessoa sabe com certeza que a sua vida dará
frutos, mas sem pretender conhecer como, onde ou quando; está segura de
que não se perde nenhuma das suas obras feitas com amor, não se perde
nenhuma das suas preocupações sinceras com os outros, não se perde
nenhum acto de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas generosas
fadigas, não se perde nenhuma dolorosa paciência. Tudo isto circula pelo
mundo como uma força de vida. Às vezes invade-nos a sensação de não
termos obtido resultado algum com os nossos esforços, mas a missão não é
um negócio nem um projecto empresarial, nem mesmo uma organização
humanitária, não é um espectáculo para que se possa contar quantas
pessoas assistiram devido à nossa propaganda. É algo de muito mais
profundo, que escapa a toda e qualquer medida. Talvez o Senhor Se sirva
da nossa entrega para derramar bênçãos noutro lugar do mundo, aonde
nunca iremos. O Espírito Santo trabalha como quer, quando quer e onde
quer; e nós gastamo-nos com grande dedicação, mas sem pretender ver
resultados espectaculares. Sabemos apenas que o dom de nós mesmos é
necessário. No meio da nossa entrega criativa e generosa, aprendamos a
descansar na ternura dos braços do Pai. Continuemos para diante,
empenhemo-nos totalmente, mas deixemos que seja Ele a tornar fecundos,
como melhor Lhe parecer, os nossos esforços.
280. Para manter vivo o ardor missionário, é necessária uma
decidida confiança no Espírito Santo, porque Ele «vem em auxílio da
nossa fraqueza» (Rm 8, 26). Mas esta confiança generosa tem de
ser alimentada e, para isso, precisamos de O invocar constantemente. Ele
pode curar-nos de tudo o que nos faz esmorecer no compromisso
missionário. É verdade que esta confiança no invisível pode causar-nos
alguma vertigem: é como mergulhar num mar onde não sabemos o que vamos
encontrar. Eu mesmo o experimentei tantas vezes. Mas não há maior
liberdade do que a de se deixar conduzir pelo Espírito, renunciando a
calcular e controlar tudo e permitindo que Ele nos ilumine, guie, dirija
e impulsione para onde Ele quiser. O Espírito Santo bem sabe o que faz
falta em cada época e em cada momento. A isto chama-se ser
misteriosamente fecundos!
281. Há uma forma de oração que nos incentiva particularmente a
gastarmo-nos na evangelização e nos motiva a procurar o bem dos outros: é
a intercessão. Fixemos, por momentos, o íntimo dum grande evangelizador
como São Paulo, para perceber como era a sua oração. Esta estava
repleta de seres humanos: «Em todas as minhas orações, sempre peço com
alegria por todos vós (...), pois tenho-vos no coração» (Fl 1,
4.7). Descobrimos, assim, que interceder não nos afasta da verdadeira
contemplação, porque a contemplação que deixa de fora os outros é uma
farsa.
282. Esta atitude transforma-se também num agradecimento a Deus
pelos outros. «Antes de mais, dou graças ao meu Deus por todos vós, por
meio de Jesus Cristo» (Rm 1, 8). Trata-se de um agradecimento constante: «Dou incessantemente graças ao meu Deus por vós, pela graça de Deus que vos foi concedida em Cristo Jesus» (1 Cor 1, 4); «todas as vezes que me lembro de vós, dou graças ao meu Deus» (Fl
1, 3). Não é um olhar incrédulo, negativo e sem esperança, mas uma
visão espiritual, de fé profunda, que reconhece aquilo que o próprio
Deus faz neles. E, simultaneamente, é a gratidão que brota de um coração
verdadeiramente solícito pelos outros. Deste modo, quando um
evangelizador sai da oração, o seu coração tornou-se mais generoso,
libertou-se da consciência isolada e está ansioso por fazer o bem e
partilhar a vida com os outros.
283. Os grandes homens e mulheres de Deus foram grandes
intercessores. A intercessão é como a «levedação» no seio da Santíssima
Trindade. É penetrarmos no Pai e descobrirmos novas dimensões que
iluminam as situações concretas e as mudam. Poderíamos dizer que o
coração de Deus se deixa comover pela intercessão, mas na realidade Ele
sempre nos antecipa, pelo que, com a nossa intercessão, apenas
possibilitamos que o seu poder, o seu amor e a sua lealdade se
manifestem mais claramente no povo.
284. Juntamente com o Espírito Santo, sempre está Maria no meio do povo. Ela reunia os discípulos para O invocarem (Act
1, 14), e assim tornou possível a explosão missionária que se deu no
Pentecostes. Ela é a Mãe da Igreja evangelizadora e, sem Ela, não
podemos compreender cabalmente o espírito da nova evangelização.
285. Na cruz, quando Cristo suportava em sua carne o dramático
encontro entre o pecado do mundo e a misericórdia divina, pôde ver a
seus pés a presença consoladora da Mãe e do amigo. Naquele momento
crucial, antes de declarar consumada a obra que o Pai Lhe havia
confiado, Jesus disse a Maria: «Mulher, eis o teu filho!» E, logo a
seguir, disse ao amigo bem-amado: «Eis a tua mãe!» (Jo 19,
26-27). Estas palavras de Jesus, no limiar da morte, não exprimem
primariamente uma terna preocupação por sua Mãe; mas são, antes, uma
fórmula de revelação que manifesta o mistério duma missão salvífica
especial. Jesus deixava-nos a sua Mãe como nossa Mãe. E só depois de
fazer isto é que Jesus pôde sentir que «tudo se consumara» (Jo
19, 28). Ao pé da cruz, na hora suprema da nova criação, Cristo
conduz-nos a Maria; conduz-nos a Ela, porque não quer que caminhemos sem
uma mãe; e, nesta imagem materna, o povo lê todos os mistérios do
Evangelho. Não é do agrado do Senhor que falte à sua Igreja o ícone
feminino. Ela, que O gerou com tanta fé, também acompanha «o resto da
sua descendência, isto é, os que observam os mandamentos de Deus e
guardam o testemunho de Jesus» (Ap 12, 17). Esta ligação íntima
entre Maria, a Igreja e cada fiel, enquanto de maneira diversa geram
Cristo, foi maravilhosamente expressa pelo Beato Isaac da Estrela: «Nas
Escrituras divinamente inspiradas, o que se atribui em geral à Igreja,
Virgem e Mãe, aplica-se em especial à Virgem Maria (...). Além disso,
cada alma fiel é igualmente, a seu modo, esposa do Verbo de Deus, mãe de
Cristo, filha e irmã, virgem e mãe fecunda. (...) No tabernáculo do
ventre de Maria, Cristo habitou durante nove meses; no tabernáculo da fé
da Igreja, permanecerá até ao fim do mundo; no conhecimento e amor da
alma fiel habitará pelos séculos dos séculos».[212]
286. Maria é aquela que sabe transformar um curral de animais na
casa de Jesus, com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura. Ela é a
serva humilde do Pai, que transborda de alegria no louvor. É a amiga
sempre solícita para que não falte o vinho na nossa vida. É aquela que
tem o coração trespassado pela espada, que compreende todas as penas.
Como Mãe de todos, é sinal de esperança para os povos que sofrem as
dores do parto até que germine a justiça. Ela é a missionária que Se
aproxima de nós, para nos acompanhar ao longo da vida, abrindo os
corações à fé com o seu afecto materno. Como uma verdadeira mãe, caminha
connosco, luta connosco e aproxima-nos incessantemente do amor de Deus.
Através dos diferentes títulos marianos, geralmente ligados aos
santuários, compartilha as vicissitudes de cada povo que recebeu o
Evangelho e entra a formar parte da sua identidade histórica. Muitos
pais cristãos pedem o Baptismo para seus filhos num santuário mariano,
manifestando assim a fé na acção materna de Maria que gera novos filhos
para Deus. É lá, nos santuários, que se pode observar como Maria reúne
ao seu redor os filhos que, com grandes sacrifícios, vêm peregrinos para
A ver e deixar-se olhar por Ela. Lá encontram a força de Deus para
suportar os sofrimentos e as fadigas da vida. Como a São João Diego,
Maria oferece-lhes a carícia da sua consolação materna e diz-lhes: «Não
se perturbe o teu coração. (...) Não estou aqui eu, que sou tua Mãe?»[213]
287. À Mãe do Evangelho vivente, pedimos a sua intercessão a fim
de que este convite para uma nova etapa da evangelização seja acolhido
por toda a comunidade eclesial. Ela é a mulher de fé, que vive e caminha
na fé,[214] e «a sua excepcional peregrinação da fé representa um ponto de referência constante para a Igreja».[215]
Ela deixou-Se conduzir pelo Espírito, através dum itinerário de fé,
rumo a uma destinação feita de serviço e fecundidade. Hoje fixamos n’Ela
o olhar, para que nos ajude a anunciar a todos a mensagem de salvação e
para que os novos discípulos se tornem operosos evangelizadores.[216]
Nesta peregrinação evangelizadora, não faltam as fases de aridez, de
ocultação e até de um certo cansaço, como as que viveu Maria nos anos de
Nazaré enquanto Jesus crescia: «Este é o início do Evangelho, isto é,
da boa nova, da jubilosa nova. Não é difícil, porém, perceber naquele
início um particular aperto do coração, unido a uma espécie de “noite da
fé” – para usar as palavras de São João da Cruz – como que um “véu”
através do qual é forçoso aproximar-se do Invisível e viver na
intimidade com o mistério. Foi deste modo efectivamente que Maria,
durante muitos anos, permaneceu na intimidade com o mistério do seu
Filho, e avançou no seu itinerário de fé».[217]
288. Há um estilo mariano na actividade evangelizadora da Igreja.
Porque sempre que olhamos para Maria, voltamos a acreditar na força
revolucionária da ternura e do afecto. N’Ela, vemos que a humildade e a
ternura não são virtudes dos fracos, mas dos fortes, que não precisam de
maltratar os outros para se sentir importantes. Fixando-A, descobrimos
que aquela que louvava a Deus porque «derrubou os poderosos de seus
tronos» e «aos ricos despediu de mãos vazias» (Lc 1, 52.53) é
mesma que assegura o aconchego dum lar à nossa busca de justiça. E é a
mesma também que conserva cuidadosamente «todas estas coisas
ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19). Maria sabe reconhecer
os vestígios do Espírito de Deus tanto nos grandes acontecimentos como
naqueles que parecem imperceptíveis. É contemplativa do mistério de Deus
no mundo, na história e na vida diária de cada um e de todos. É a
mulher orante e trabalhadora em Nazaré, mas é também nossa Senhora da
prontidão, a que sai «à pressa» (Lc 1, 39) da sua povoação para
ir ajudar os outros. Esta dinâmica de justiça e ternura, de contemplação
e de caminho para os outros faz d’Ela um modelo eclesial para a
evangelização. Pedimos-Lhe que nos ajude, com a sua oração materna, para
que a Igreja se torne uma casa para muitos, uma mãe para todos os
povos, e torne possível o nascimento dum mundo novo. É o Ressuscitado
que nos diz, com uma força que nos enche de imensa confiança e
firmíssima esperança: «Eu renovo todas as coisas» (Ap 21, 5). Com Maria, avançamos confiantes para esta promessa, e dizemos-Lhe:
Virgem e Mãe Maria,
Vós que, movida pelo Espírito,
acolhestes o Verbo da vida
na profundidade da vossa fé humilde,
totalmente entregue ao Eterno,
ajudai-nos a dizer o nosso «sim»
perante a urgência, mais imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus.
Vós que, movida pelo Espírito,
acolhestes o Verbo da vida
na profundidade da vossa fé humilde,
totalmente entregue ao Eterno,
ajudai-nos a dizer o nosso «sim»
perante a urgência, mais imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus.
Vós, cheia da presença de Cristo,
levastes a alegria a João o Baptista,
fazendo-o exultar no seio de sua mãe.
Vós, estremecendo de alegria,
cantastes as maravilhas do Senhor.
Vós, que permanecestes firme diante da Cruz
com uma fé inabalável,
e recebestes a jubilosa consolação da ressurreição,
reunistes os discípulos à espera do Espírito
para que nascesse a Igreja evangelizadora.
levastes a alegria a João o Baptista,
fazendo-o exultar no seio de sua mãe.
Vós, estremecendo de alegria,
cantastes as maravilhas do Senhor.
Vós, que permanecestes firme diante da Cruz
com uma fé inabalável,
e recebestes a jubilosa consolação da ressurreição,
reunistes os discípulos à espera do Espírito
para que nascesse a Igreja evangelizadora.
Alcançai-nos agora um novo ardor de ressuscitados
para levar a todos o Evangelho da vida
que vence a morte.
Dai-nos a santa ousadia de buscar novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.
para levar a todos o Evangelho da vida
que vence a morte.
Dai-nos a santa ousadia de buscar novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.
Vós, Virgem da escuta e da contemplação,
Mãe do amor, esposa das núpcias eternas
intercedei pela Igreja, da qual sois o ícone puríssimo,
para que ela nunca se feche nem se detenha
na sua paixão por instaurar o Reino.
Mãe do amor, esposa das núpcias eternas
intercedei pela Igreja, da qual sois o ícone puríssimo,
para que ela nunca se feche nem se detenha
na sua paixão por instaurar o Reino.
Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.
ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.
Mãe do Evangelho vivente,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
Amen. Aleluia!
Dado em Roma, junto de São Pedro, no encerramento do Ano da Fé, dia 24 de Novembro – Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo – do ano de 2013, primeiro do meu Pontificado.
FRANCISCUS
[1]Paulo VI, Exort. ap. Gaudete in Domino (9 de Maio de 1975), 22: AAS 67 (1975), 297.
FONTE: Vatican.va
FONTE: Vatican.va
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