Por Pe. Fernando Altemeyer Júnior
Contemplar a vida dos agentes de pastoral e escutar suas
histórias de vida, normalmente traz à tona memórias e experiências de
dor e de muitos fragmentos do caleidoscópio da Igreja católica no
Brasil. Muitos se perguntam se tantos anos de trabalho e de luta,
perseguidos pela ditadura militar e pela repressão política, deram
resultados eficazes ou só muita canseira. Se nossa pastoral junto aos
empobrecidos bebeu do poço abundante do Deus da vida ou padeceu junto na
caatinga este vale de lágrimas que é o cotidiano da exploração
crescente de nossa gente.
Quando bate o desânimo, como acender de novo a chama do entusiasmo,
da mística e do ardor pelo trabalho pastoral? Essa continua sendo uma
grande questão. Sem petulância, queremos oferecer algumas pistas
concretas.
Lembrava-me uma religiosa missionária vinda do Japão, hoje
trabalhando na zona rural, que raramente existem desânimos permanentes e
que, quando estamos sob a influência de um desânimo passageiro, alguém
ao nosso lado, padre ou religiosa, está superanimado e assim nos
contagia com seu élan. “Se ambos, agentes e religiosas,
estivermos desanimados, sempre resta olhar a vida de nosso povo e da
comunidade onde trabalhamos, verdadeiro cadinho de esperança e fonte da
eterna juventude de nossa pastoral”. Sem a fé do povo teríamos
dificuldade em sair de muitos impasses pastorais. Dos outros sempre nos
vem o apoio para superar as crises e as dores.
Um dos grandes problemas de nossa pastoral, atualmente, é o de padres
e seminaristas que não foram preparados nem se prepararam para
trabalhar em equipe. Assim a primeira crise pastoral, sentimental ou
política por que passam, não sabem como superá-la, e acabam
transformando pequenos obstáculos em cizânia e briga insolúvel. Nessas
ocasiões é sempre o leigo ou a freira que “paga o pato” e deve se
retirar, às vezes transformando belas comunidades e anos de trabalho
maduro e coletivo em ciumeira e fofoca, onde sempre “o outro” ou “a
outra” tem a culpa e o pecado.
Vejamos algumas luzes e chamas para sair desse impasse.
1. Chama que não se apaga
A primeira grande experiência vivida pelo agente da pastoral
libertadora que se chamava Moisés deu-se no alto da montanha santa
chamada Horeb, onde, após apascentar seu rebanho, ele contempla um fogo
que arde sem se consumir, numa bela e misteriosa Sarça Ardente. O relato
no livro do Êxodo, capítulo 3, nos apresenta essa que é uma das mais
belas epifanias bíblicas.
Esta é sempre a primeira e fundamental experiência mística de quem
quer se consagrar ao trabalho popular libertador: ser capaz de
contemplar e ser capaz de extasiar-se diante de “sarças ardentes”.
Esse fogo que não se apaga foi para Moisés, e é também para nós, uma
porta privilegiada para vislumbrar a dor do povo, para perceber a
exploração dos irmãos e para sermos chamados por nosso próprio nome para
cumprir uma missão animados por Deus.
Diante dessa chama inextinguível, nosso companheiro de pastoral,
Moisés, soube adorar e sobretudo contemplar. Assim também a pastoral
popular na América Latina, seguindo os passos firmes e incontornáveis do
Vaticano II, de Medellín, de Puebla e Santo Domingo, aprendeu a
contemplar as sarças que ardem no meio do povo.
Sarças que são gente de Deus e Deus no meio da gente. Sarças que
queimam e incomodam. Sarças que inquietam e questionam nossas Igrejas e
nossa pastoral. Sarça com o rosto de gente sofrida e machucada.
Sarça-gente indígena, massacrada secularmente clamando por terra e
liberdade. Sarça-gente negra, organizando quilombos há 300 anos desde o
de Palmares, na Serra da Barriga, até os de hoje nas CEBs das
periferias.
Assim também hoje, nossa missão primeira é a de, na prática pastoral, sermos capazes de contemplar as sarças vivas e ardentes.
Sim, um bom sacerdote ou religiosa, que assume a luta evangélica da
libertação, não pode ser um ativista paranoico como tantos se tornaram.
Precisamos com urgência de contemplativos na ação, de gente que viva o
profundo e misterioso encontro com o Pai de nossos pais, com o Deus vivo
e verdadeiro. E isso se faz no silêncio, na escuta e na prece fervorosa
e miúda. Nada de tanta gritaria e aleluias. Antes de tudo, é preciso
contemplar as dores presentes em tantos rostos sofridos.
2. A mecha que ainda fumega
Depois de muitos quilômetros rodados de pastoral e reuniões
infindáveis, bate na gente o cansaço no corpo e na alma. Tem-se a
impressão de que tudo se tornou vício ou rotina. Visitas pastorais
feitas por conta da tradição. Acolhimento marcado e controlado pela
agenda e pelo cronômetro. Nem pedimos para o povo se sentar, só falamos
de pé e correndo. No fim das missas ou pela janela da casa. Pior ainda
se somente pela secretária eletrônica ou pelo interfone.
Tudo isso não será por medo dos novos e da criatividade dos outros?
Dificuldade pedagógica e humana de lidar com os excluídos? Modo de viver
que se aproxima demais do estilo burguês e nos afasta dos pobres?
Compra de muitos aparelhos eletrônicos, de muitos vídeos, de muita grade
para as igrejas e conventos, e poucas portas abertas para os jovens, os
pobres e os operários?
Há demasiada preocupação com alfaias, túnicas, bordados e rituais.
Parece que estamos informados de quase tudo na arte e nos símbolos, mas
nenhuma mística nos movimenta e sustenta a pastoral e o compromisso
inicial com os pobres e com a transformação. A luta contra a cultura da
morte parece que foi se extinguindo e se apagando.
É hora de deixar de cuidar de tantas estruturas eclesiásticas e
retomar o estilo sóbrio do Servo Sofredor do profeta Isaias. Mais
evangelho, gente! Mais profecia e uma boa pitada de sabedoria poderão
animar e reanimar mentes e corações cansados ou adormecidos.
Sabemos que o aburguesamento mata a pastoral e a mística só pode
subsistir se vivermos o paradoxo da fé cristã em plenitude. Se nos
confrontarmos, com destemor e loucura santa, com o sistema neoliberal
idolátrico. Se nos negarmos a segui-lo como boa notícia e mostrarmos a
loucura querigmática dos pobres de Deus: “… para chegares a possuir
tudo, não queiras possuir coisa alguma; para chegares ao que não és, hás
de ir por onde não és”[1].
Nesta nebulosa ou gelatina atual, em que nos sentimos perdidos e
buscamos novas formas e métodos para nossa prática, ouçamos o profeta do
exílio com os ouvidos atentos e com o coração aberto: “Eis meu servo
que eu apoio, meu eleito, ao qual minha alma quer bem, pus sobre ele o
meu Espírito. Para as nações ele fará surgir o julgamento. Não gritará,
não levantará o tom, não fará ouvir na rua o seu clamor, não quebrará o
caniço rachado, não apagará a mecha que ainda fumega; com certeza, fará
surgir o julgamento” (Is 42,1-3).
Esse texto nos mostra que o rosto vivo e machucado de Jesus é para
cada agente de pastoral um sinal sacramental da escolha de Deus no
cotidiano de sua aliança junto ao povo. Deus não apagará a mecha: aquele
amor primeiro que nos levou ao compromisso de sermos Igreja de um jeito
sempre novo. Essa mecha fumega, pois temos brasas vivas que nos
alimentam na fé e no testemunho evangelizador.
Caniço e mecha sempre se aplicam às vítimas e aos desprovidos de
força, mas plenos do Espírito Santificador. Entre nós temos tantos
caniços vergados e rachados, mas jamais tombados. Temos chamas vivas
como D. Pedro Casaldáliga (neste ano celebrando 25 anos de pastoreio
sertanejo) e D. Paulo Evaristo Arns (neste ano celebrando 25 anos de
arcebispo urbano). Temos servos queridos e amados, já junto de Deus nos
céus, como Mons. Larraín, Mendes Arceo, Leônidas Proaño, Enrique
Angelelli, Oscar Romero e Rivera y Damas. Temos ungidos martiriais como
Margarida Alves, Santo Dias e Chico Mendes. São chamas vivas do amor de
Deus. Eles nos acordam das letargias neoliberais para a verdadeira
liturgia vital. Eles nos impedem de transformar nossa liturgia
eucarística em rito profano. São sementes de novos cristãos pela palavra
e pelo testemunho, pela teologia e pelo evangelho. Enfim, porque são e
foram coerentes com os pobres e com o voto de pobreza. Eram e são pobres
no meio dos pobres. Sem disfarce nem mentiras.
Com essas chamas vivas, não podemos desanimar, pois nos alimentam com
a seiva pura que vem das raízes do Cristo libertador. Das fibras
profundas de sua prática bebemos esperança e podemos de novo assumir
riscos políticos e pastorais em nome do Cristo e dos pobres, seus
amados.
3. “Eu vim trazer fogo à terra”
Ao assumir a pastoral junto dos empobrecidos e excluídos, temos
diante de nós tamanhos desafios que acabamos nos sentindo pequenos e
impotentes.
Em 1944 o dominicano Pe. Lebret dizia:
“Muitos homens, diante dos obstáculos, param, consideram-nos,
medem-nos e ficam no lugar. Encontram um cupim e o transformam numa
montanha. Bastaria, quase sempre, saltar por cima ou contornar.
Outros ficam parados sistematicamente, analisando todos os
obstáculos, todas as dificuldades reais possíveis, atuais e futuras. Tal
atitude é semelhante à do ciclista que pretendesse permanecer em
equilíbrio sem pedalar e sem correr. O equilíbrio da ação está no
movimento”[2].
Essa tem sido costumeiramente outra razão de tanta crise e
desequilíbrio pastoral. Falta-nos o entusiasmo e a audácia dos grandes
evangelizadores. audácia indispensável, pois nossa pastoral junto aos
empobrecidos será aos olhos do mundo uma grande loucura, uma imprudência
e um enorme desperdício. Alguns até nos chamarão de oportunistas ou
vanguardistas.
Temos, entretanto, o estímulo e a palavra de nosso mestre na escola
da pastoral popular, que é o próprio Jesus de Nazaré: “Eu vim trazer
fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso! Devo receber um
batismo, e como me angustio até que esteja consumado” (Lc 12,49-50).
Esse texto, que tanto incomoda as instituições — incluindo a
eclesiástica — e aqueles que pensam com mentalidade de funcionários, é
um convite à liberdade evangélica, ao serviço corajoso junto aos
oprimidos e excluídos e, sobretudo, uma experiência de Deus em nossa vida comunitária.
Cristo lembra que nosso batismo nos introduz na vida da Trindade
Santa e que nossa espiritualidade não pode reduzir-se a um
pentecostalismo estreito. Nossa espiritualidade é trinitária. Somos
trinitários. E é por estarmos nas mãos do Pai, seguindo o exemplo e a
prática de seu Filho, que somos inspirados e soprados pelo fogo do
Espírito Santo.
É a Trindade Santa que impede a gente de desanimar, mesmo quando
todos os agentes de uma equipe e até mesmo o povo estiver cansado e
desesperançado. Só Deus resta para nos consolar e afagar. Ele que é Pai
de todas as misericórdias e do amor pleno. Quando o desânimo for
crônico, só Deus para nos queimar por dentro, uma e outra vez!
Partilhemos um belo texto de Santo Agostinho, para que queime nossa
alma e de toda nossa Igreja latino-americana, como queimou fundo o autor
das Confissões:
“O que é que amo, quando amo Deus? … Quando o amo, amo uma certa luz,
uma certa voz, uma como que fragrância, um alimento, um abraço; amo
tudo isso quando amo a Deus — luz, voz, fragrância, alimento e abraço para o meu homem interior.
N’Ele a minha alma vê uma luz que não se apaga, n’Ele ouve melodias
infinitas; n’Ele se expande a fragrância de perfumes que não são
dissipados pelo vento, n’Ele saboreia-se um alimento que nunca sacia;
n’Ele o abraço é tão estreito e íntimo que nenhum cansaço o pode
desfazer. Isso é o que eu amo, quando amo a Deus. E o que é isso?”[3].
Assim nossa espiritualidade libertadora deve ser sempre filha da
rebeldia e inebriar-se desta luz, voz, fragrância, alimento e abraço do
nosso Deus e Pai maternal!
Quem já pôde estar com pessoas no limite da vida já sentiu essa
experiência. Quem já participou de uma luta dos sem-terras ou com os
favelados já ouviu essa voz. Quem vive e celebra a Eucaristia sabe de
onde vem essa luz e é capaz de ouvir melodias infinitas. Na experiência
da dor, da luta e da Eucaristia se escondem os mistérios maiores desse
fogo que abrasa e que renova a face da terra.
Um destacado líder da comunicação cristã atual no Brasil, Mons.
Arnaldo Beltrami, insiste cotidianamente lembrando um axioma de toda
pastoral a todo agente de pastoral que queira ser feliz: “Só faz sentido
para mim o que for sentido por mim”.
Na mística ou espiritualidade dos seguidores de Jesus é assim também.
Se não colocarmos todas as energias em favor de nossos projetos e
demonstrarmos com sentimento e pensamentos nossa disposição de mudar as
estruturas de injustiça, ninguém, nem nós mesmos, vamos acreditar no que
fazemos. É de dentro que vêm a força e o tesouro, mas vêm também os
erros e o desânimo.
Nestes tempos de grandes dificuldades pastorais e de pouco apoio
eclesial e estratégico para quem está nas periferias de nossas cidades, é
preciso descobrir e avivar as chamas dos que ainda hesitam e provocar o
voo daqueles que são tímidos. A hora é de audácia missionária. É hora
de acender fogueiras para esquentar corações e vidas mornas. Tempo de
esperanças ferventes e caridades que aqueçam de verdade!
4. Os místicos estão entre nós
Três grandes desafios pedagógicos podem, se enfrentados, nos ajudar a
vencer o desânimo atual e a fragmentação de nosso trabalho popular.
Isso não somente na Igreja, mas também nas associações populares. Não
são receita de bolo, nem horóscopo. São pistas refletidas e pensadas a
partir da prática e seus novos desafios. Como nossa grande prioridade é e
continua sendo o trabalho de base com o povo das bases, temos de ocupar
espaços e aprender a partir de três pilares fundamentais: presença,
solidariedade e resistência.
4.1. O que entendemos por presença?
É ser parceiro com o povo sem carregá-lo nas costas.
É ouvir suas dores e buscar junto unguento para curá-las.
É incentivar a sua ação enquanto sujeito e procurar não substituir sua prática conscientizadora.
É assumir o lugar social dos pobres e seus projetos, e não somente
fazer turismo e filantropia nas favelas, cortiços ou acampamentos.
É ser persistente e “cabeça-dura” nas coisas que exigem perseverança e
firmeza permanente. E ser maleável com os companheiros e membros de
nossa equipe de vida. Afinal, ninguém é de ferro.
Assim me dizia a Ir. Dirce Genésio dos Santos, religiosa do Instituto
Beatíssima Virgem Maria, profundamente comprometida com a periferia
paulistana há muitos anos: “O que me anima é a fé em Jesus Cristo, seu
exemplo de vida e as pessoas que o seguem. Neste mundão de meu Deus,
todos os que seguem Jesus verdadeiramente e tentam fazer algo novo, são
banidos. O próprio Cristo teve momentos de desânimo e de conflito
profundo. Lembremos da cena em que pede para afastar o cálice, mas, em
seguida, ele se firma e diz que veio para cumprir a vontade do Pai.
Procuro sempre fazer revisão de minha vida e de minha prática. Rever
ajuda mais do que fazer. Aliás, penso ser este o ponto fundamental do
crescimento humano. Tenho também muito dentro de mim de fidelidade ao
exemplo de minha fundadora, esta mulher maravilhosa que foi Maria Ward.
Ela foi o máximo. Penso também que hoje existem muitos movimentos
religiosos, dentro e fora da Igreja católica, que estão estimulando o
comodismo e a resignação. Eu, ao contrário, nas horas de maior angústia e
dor, me apego ao Cristo e digo: ‘água mole em pedra dura tanto bate até
que fura’. E logo completo: se faltar água, use dinamite”.
Esse exemplo e presença viva da fidelidade ao Cristo da Ir. Dirce se
multiplicam em tantas pessoas e comunidades vivas neste imenso Brasil, e
nos ajudam a afirmar que cristão nenhum tem o direito de permanecer em
cima do muro.
As decisões, embora difíceis, são critério de fidelidade ao
evangelho. A presença é o primeiro caminho para vencer o mal e o
fatalismo. Exige compromisso e pôr-se a caminho sempre.
4.2. O que entendemos por solidariedade?
É estar sempre juntos, especialmente nos momentos fortes.
É ser equipe de amigos e de partilha.
É celebrar juntos com frequência.
É manter contatos com as pessoas com quem trabalhamos (no passado), e
não simplesmente com quem agora estamos trabalhando. Ser solidários
sempre, e não apenas, oportunisticamente, nos momentos que estamos
precisando.
É agir em favor dos pobres, e não só fazer denúncia ou discurso panfletário.
Assim nos afirma Santa Teresa de Jesus, doutora da Igreja: “O Senhor
quer obras. Se vês uma enferma a quem podes dar algum alívio, não tenhas
receio de perder a tua devoção e compadece-te dela. E se lhe sobrevém
alguma dor, doa-te como se a sentisses em ti. Se for preciso, faze jejum
para lhe dar de comer. Não tanto com os olhos nela, quanto porque sabes
que teu Senhor o quer assim. Esta é a verdadeira união com a vontade de
Deus! Se vires louvar muito a uma pessoa, alegra-te mais do que se te
louvassem a ti. Verdadeiramente é fácil para quem é humilde, pois até
sente confusão quando é louvado… Olhai quanto custou a nosso Esposo o
amor que nos teve. Com o objetivo de nos livrar da morte, sofreu a morte
crudelíssima na cruz”[4].
4.3. O que entendemos por resistência?
É pensar a pastoral e o trabalho com o povo com mais criatividade.
É celebrar as pequenas vitórias.
É abrir espaço para que o povo se expresse nas liturgias e nos encontros.
É estudar a história recente e passada das lutas populares resgatando lições da memória popular.
É encontrar novos aliados para as causas difíceis e advogados para as causas consideradas impossíveis.
É treinar gente para a resistência ativa e para as horas de conflito.
É, enfim, ler, rezar e alimentar-se com o texto sagrado da Escritura para descobrir novas luzes para o amanhã.
É confiar na graça divina e, sobretudo, na misericórdia do Pai de Jesus.
Assim nos ensina o doutor e mestre Tomás de Aquino: “A esperança não
se apoia principalmente na graça já recebida, mas na onipotência e
misericórdia divinas, pela qual quem não tenha a graça pode consegui-la,
e assim chegar à vida eterna. E da onipotência de Deus e de sua
misericórdia está convicto aquele que tem fé”[5].
Se após toda esta reflexão sobre como acender ou reacender a chamada
esperança e da mística o(a) caríssimo(a) leitor(a) não tiver ainda
conseguido fazer fumegar, faiscar ou queimar algo em seu interior, o
jeito (e a hora) é dar o salto mortal para dentro do Deus escondido,
fonte de toda mística e paixão. Era assim que E. Kant definia a mística:
“… ist ein Übersprung von Begriffen zum Undenkbaren” (é um salto mortal da razão para o inconcebível).
Isso que o pensador alemão filosoficamente definia, boa parte do povo
brasileiro assim murmura a cada manhã: “Com Deus eu me deito, com Deus
eu me levanto. Com a graça de Deus e do Espírito Santo. Jesus, Filho da
Virgem Maria, me acompanha esta noite e todo dia. Vós me olhais e me
guiais. Meu anjo da guarda me ampara e me guia”.
A tradição apocalíptica, transformando tanta perseguição em doxologia
de resistência, nos faz proclamar e acreditar nessa perspectiva como
hino em nossa Igreja. Assim nós cremos que quanto mais escura é a noite,
mais prenuncia o alvorecer, com o poeta Thiago de Mello e com os
cristãos de ontem na Roma imperial — sob o domínio de Diocleciano — e os
de hoje, nas comunidades vivas dos pobres. “Não haverá mais maldição. O
trono de Deus e do Cordeiro estará na cidade e seus servos lhe
prestarão culto: verão sua face e seu nome estará sobre suas frontes.
Não haverá mais noite, ninguém mais precisará de luz da lâmpada nem de
luz do sol, porque o Senhor Deus difundirá sobre eles a sua luz, e
reinarão pelos séculos dos séculos” (Ap 22,3-5).
[1] São João da Cruz, “Subida ao Monte Carmelo”, livro I, cap. XIII, in Obras Completas, Vozes-Carmelo Descalço, Petrópolis, 1984, p. 182.
[2] Louis-Joseph Lebret, Princípios para a ação, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1984, p. 66.
[3] Santo Agostinho, Confissões, Quadrante, São Paulo, 1989, p. 181; S. Agostinho, Confissões, 5ª ed., Paulus, São Paulo, 1993, pp. 254-255.
[4] S. Teresa, “Quintas Moradas”, cap. III, in Santa Teresa de Jesus, Castelo interior ou moradas, 5ª ed., Paulus, São Paulo, 1994, pp. 122-123.
[5] Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, (Parte II-II, questão 18, artigo 4, sujeito de esperança), BAC maior 36 (Suma de Teologia, tomo III), Madri, 1990, p. 173.
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